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Universidade Federal de Juiz de Fora
Programa de Pós-Graduação em Educação
Mestrado em Educação
Maria Diomara da Silva
OFICINA DE TEATRO:
APORTE PARA O DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM
Juiz de Fora
2015
Maria Diomara da Silva
OFICINA DE TEATRO:
APORTE PARA O DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação, da Faculdade de Educação, da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Lúcia Furtado de Mendonça Cyranka
Juiz de Fora
2015
Maria Diomara da Silva
OFICINA DE TEATRO:
APORTE PARA O DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação, da Faculdade de Educação, da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito para obtenção do grau de Mestre.
Aprovada em
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Lúcia Furtado de Mendonça Cyranka – Orientadora
Universidade Federal de Juiz de Fora
____________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Stella Maris Bortoni-Ricardo
Universidade Federal de Brasília
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Prof.ª Dr.ª Luciane Manera Magalhães
Universidade Federal de Juiz de Fora
Aos meus pais,
com amor.
Agradecimentos
A Deus, pai de infinito amor e misericórdia, por firmar meus pés ao longo do caminho. Por fazer por mim sempre mais do que eu peço e imagino...
Aos meus pais, Gaspar e Imaculada, pelo carinho, amor e cuidado.
Ao meu irmão, Isaias, e minha cunhada, Carla, pelo incentivo e apoio de sempre!
Aos queridos amigos, Bel, Christian, Adriana, Fran, Juliana Clara, Vivi Marins, Nil, Júnior, Maraísa, William, e a todos aqueles que me acompanharam na estrada da vida.
À querida amiga Josi Silva, uma das maiores incentivadoras que tive para fazer o mestrado.
Aos meus companheiros de turma e orientação Bruna Loures de Araújo Barroso e Luís Carlos de Oliveira. Sempre ouvi dizer que o caminho do mestrado era muito solitário... Essa lógica não foi possível ser vivida por causa da rica presença de vocês. Definitivamente, vocês foram essenciais!
Ao Fernando Valério, que muito mais que um educador, é a própria poesia! Foi um presente da vida o nosso reencontro no Curumim.
Ao Leandro, à Elisângela Silva, ao Álvaro e toda a equipe do Curumim que me acolheram nesses dois anos de pesquisa na instituição.
A todas as crianças da oficina de teatro e do Curumim que contribuíram e que são o maior motivo deste trabalho, renovando dentro de mim a essência de quem eu sou, das minhas escolhas, o motivo e o significado da minha profissão.
Aos meus companheiros Daniella Raymundo, Danielle Uchôa, Josiane Toledo, Higor Pifano, Maira Portela, Raul Furiatti, Rachel Finamore e Tiago Zagnoli, pela partilha do conhecimento de vocês para a construção deste trabalho.
Aos meus colegas de trabalho, pelo carinho, apoio e compreensão e a todos aqueles que colaboraram para que este trabalho se tornasse possível.
Ao meu professor Cristiano, que plantou em mim desde cedo a semente da esperança. O que vivo também é fruto da decisão que você fez de ser um profissional comprometido com a educação.
À querida Profª Luciane Manera, que tanto aprendi durante anos, academicamente e na vida, e que me inseriu no mundo da pesquisa.
À minha querida orientadora, Profª Lucia Cyranka, obrigada pela honra da sua orientação. Minha eterna gratidão e respeito.
“[…] todo teatro é necessariamente político, porque políticas são todas as atividades do homem, e o teatro é uma delas. Os que pretendem separar teatro da política pretendem conduzir-nos ao erro – e esta é uma atitude política. […] teatro é uma arma. Uma arma muito eficiente. Por isso, é necessário lutar por ele. Por isso as classes dominantes permanentemente tentam apropriar-se do teatro e utilizá-lo como instrumento de dominação. Ao fazê-lo modificam o próprio conceito do que seja “o teatro”. Mas o teatro pode igualmente ser uma arma de liberação. Para isso é necessário criar formas teatrais correspondentes. É necessário transformar.”
Augusto Boal
RESUMO
A minha constituição de espaço de vida e formação durante a infância, adolescência e fase adulta no lugar reconhecido como favela foi a força motriz que gerou em mim inquietações, interesses e motivações para desenvolver esta pesquisa. Neste trabalho, busquei apresentar uma pesquisa que procurou mostrar o desenvolvimento linguístico e a produção dos saberes de crianças e adolescentes moradores do bairro onde vivi, no qual um projeto denominado Curumim está inserido, desenvolvido pela Associação Municipal de Apoio Comunitário – AMAC, da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora, no Estado de Minas Gerais. O objetivo foi investigar se as oficinas de teatro, como as do Curumim, ofereciam contribuições efetivas para o desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos. O caminho para a coleta de dados durante as oficinas aconteceu por meio das anotações no diário de campo, questionários de crenças, questionário socioeconômico e gravação eletrônica em áudio. Esses materiais instrumentalizaram a coleta dos dados e fizeram parte de uma amostra que constituíram o corpus que compôs essa pesquisa. A oficina de teatro não é uma aula de português tradicional de língua portuguesa, no entanto, enquanto gênero textual, o teatro atende a diversos aspectos que podem auxiliar um trabalho voltado para uma reflexão sobre a língua, por meio dos princípios da Sociolinguística Educacional, principalmente contemplando um trabalho através de uma pedagogia culturalmente sensível (BORTONI-RICARDO, 2004) capaz de levar até as crianças dessa comunidade, possibilidades de ampliar sua competência de linguagem. Além disso, as oficinas trazem consigo características que são essencialmente próprias do contexto sociocultural das crianças, pois, as atividades realizadas partem daquilo que é significativo para elas.
PALAVRAS-CHAVE: teatro, Sociolinguística, favela, pedagogia culturalmente sensível.
ABSTRACT
My constitution of life space and my formation during childhood, adolescence and adulthood at a slum was the driving force that created in me concerns, interests and motivation in order to develop this research. In this work, I aimed at presenting the development of a research which sought to show the linguistic development and the production of children’s and adolescent’s knowledge living in the neighborhood where I lived, where there is a social project called Curumim developed by Associação Municipal de Apoio Comunitário – AMAC, by Juiz de Fora Mayor, Minas Gerais. The goal was to investigate whether the acting classes, such as the ones offered by Curumim, would offer effective contributions for the development of the communicative competence of students. The route to collect the data during the classes occurred by the notes on the field diary, beliefs questionnaires; socioeconomic questionnaires and audio electronic recording. These resources equipped the data collection and took part in a sample that constituted the corpus which composed this research. The acting class is not a traditional Portuguese class, however, as a textual genre, it includes several aspects that are able to help to develop a work inclined to reflect about the language, through the principles of Educational Sociolinguistics, mainly contemplating a work through a culturally sensitive pedagogy (BORTONI-RICARDO, 2004) able to take to the children from this community possibilities of enlarging their language competence. Furthermore, the classes bring characteristics that are essentially specific of children’s sociocultural context, because the activities are conducted from what is significative for them.
KEYWORDS: acting classes, Sociolinguistics, slum, culturally sensitive pedagogy.
LISTAS DE QUADROS
Quadro 1 - Direitos gerais de aprendizagem: língua portuguesa43Quadro 2 – Numeramento – Inaf / Brasil (2002-2004) - por faixa etária44Quadro 3 - Direitos gerais de aprendizagem: Síntese46Quadro 4 - Dicotomias perigosas53Quadro 5 - Eixo 5 : Produção oral e gêneros textuais - Conhecimentos e atitudes54Quadro 6 – Oralidade55Quadro 7 - Gêneros orais trabalhados em sala de aula58Quadro 8 - Gêneros sugeridos para a prática de produção de textos orais e escritos 60Quadro 9 - Meios não linguísticos da comunicação oral61Quadro 10 - Classes e subclasses de habilidades sociais propostas como relevantes na infância64Quadro 11 - Conceito de competência comunicativa67Quadro 12 - Componentes da pesquisa na Etnografia da Comunicação68Quadro 13 - Debilidades de infraestrutura das casas75Quadro 14 - Síntese dos Componentes da pesquisa da Etnografia da Comunicação da peça: “Onde estão os meus direitos? Onde estão que eu não vi?103Quadro 15 - Síntese dos Componentes da pesquisa da Etnografia da Comunicação da peça: Auto de Natal112Quadro 16 - Síntese dos Componentes da pesquisa da Etnografia da Comunicação da peça: Jogo teatral do navio119
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 - Bloco 1 - Relação alunos com o ensino de língua portuguesa 83Gráfico 2 – Bloco 2 - Avaliação linguística85Gráfico 3 – Bloco 3 - Consciência sobre o multilinguísmo87Gráfico 4 – Bloco 4 - Reconhecimento da identidade linguística88Gráfico 5 – Bloco 5 - Teatro e a linguagem 89
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Núcleo residencial construído no Sítio do Resto conhecido como Flagelo.15Figura 2 - Foto do bairro Vila Olavo Costa no ano de 197417Figura 3 - Foto do bairro Vila Olavo Costa no ano de 197618Figura 4 - Foto panorâmica do bairro Vila Olavo Costa73Figura 5 - Ganhos por domicílio75
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO132 REVISÃO DE LITERATURA232.1 Introdução aos estudos da linguagem242.2 A língua como identidade do sujeito262.3 Sociolinguística272.4 Língua e norma302.5 O ensino de língua no Brasil: o que é que se ensina? O que é que se aprende?332.6 O caminho da alfabetização no século XX362.7 O que é ser alfabetizado?402.8 Da alfabetização para o letramento462.9 O ensino do oral: por que ensinar oralidade?522.10 O que dizem os documentos oficiais?532.11 Os gêneros textuais orais552.12 O teatro e a oralidade592.13 As habilidades sociais e a oralidade613 PARA CHEGAR À VILA: A CONSTRUÇÃO DE UM CAMINHO663.1 Por onde andei...694 A VIDA NA VILA724.1 O Curumim775 A PESQUISA795.1 O que pensam as crianças?805.2 As oficinas de teatro935.2.1 Eixo de análise 1: “Onde estão os meus direitos? Onde estão que eu não vi?”935.2.2 - Eixo de análise 2: Auto de Natal1045.2.3 Eixo de análise 3: Jogo teatral do navio113CONSIDERAÇÕES FINAIS: EM BUSCA DA RUPTURA DO SILÊNCIO120REFERÊNCIAS 124 ANEXOS 133
1 INTRODUÇÃO
[...] o indivíduo-criança e o meio cultural em que se insere, no nosso caso, a favela [...], estão intimamente ligados, simultaneamente e complementarmente na co-construção das identidades. (COELHO, 2007, p. 176)
A constituição do meu espaço de vida e formação durante a minha infância, adolescência e fase adulta, no lugar reconhecido como favela, foi a força motriz que gerou em mim inquietações, interesses e motivações para desenvolver esse trabalho.
Venho desse lugar de moradia socialmente desfavorecido. Porém, reconhecer-me moradora de favela foi uma descoberta recente, quase por acaso, ao realizar uma busca pelo nome do meu bairro em um site, pela internet. Diante dos resultados apresentados, que em sua maioria deles referia-se a reportagens relacionadas à criminalidade, grande foi minha surpresa ao deparar-me com um artigo de uma revista acadêmica, escrito por uma geógrafa, mestre em Serviço Social, que pesquisou sobre a ocultação do fenômeno favela em Juiz de Fora.
Abreu assim se expressa (2010, p. 150):
Percebe-se que esse quadro de carências faz parte da confirmação territorial de cidades médias e das metrópoles – e Juiz de Fora não é uma exceção. O que distingue esta de outras cidades é que, mesmo com a existência de lugares com grande concentração de pobreza, ainda assim ocorre a ocultação do fenômeno favela.
No trabalho consultado, o bairro onde nasci, cresci e vivi se apresentava como a primeira e a mais extensa favela da cidade, apresentando essa realidade como algo já presente na história desse município.
No final do século XIX, a prefeitura de Juiz de Fora recebeu a doação de um terreno destinado à construção de um novo Matadouro Municipal que, na época, situava-se na Rua Halfeld, no centro da cidade (PREFEITURA DE JUIZ DE FORA, 1988). Esse novo terreno localizava-se em um lugar conhecido como Sítio do Resto, situado logo após o bairro Poço Rico, lugar que posteriormente originaria a Vila Olavo Costa. A concretização da construção do novo matadouro, porém, só foi realizada na primeira metade do século XX, na década de 1940. Essa foi a região em que o bairro se originou.
Os primeiros casebres foram construídos atrás do morro do Matadouro onde existia uma área de pastagem com duas trilhas que conduziam os animais do pasto até o curral, ficando conhecido como Caminho do Boi. Foi nesse local que alguns trabalhadores do Matadouro e de uma pedreira próxima dali começaram a habitar.
Outro fator contribuinte para o início do crescimento populacional no bairro foi que, em 1940, o Rio Paraibuna transbordou na antiga região conhecida como Botanágua, na região leste da cidade, desabrigando cerca de 2000 pessoas. Essas famílias receberam subsídios para edificar suas casas por intermédio do Conselho Central da Sociedade São Vicente de Paulo em Juiz de Fora, formando assim um núcleo residencial no então Sítio do Resto, logo acima do Matadouro, popularmente conhecido como Flagelo.
Um fato curioso que também podemos observar é que o próprio nome dado a esses lugares já carregava um estigma forte (Sítio do Resto, Flagelo), marcando negativamente esses locais e, consequentemente, os seus moradores. Atualmente, ainda é utilizado o termo para o lugar conhecido como Caminho do Boi, mesmo não sendo mais esse lugar passagem de animais há anos.
Figura 1- Núcleo residencial construído no Sítio do Resto conhecido como Flagelo. (PREFEITURA DE JUIZ DE FORA, 1988, p. 3)
Alguns relatos informam que a ocupação começou a acontecer de forma expressiva a partir da década de 1950. Abreu (2010) transcreve a descrição do bairro feita pela imprensa da época: “[...]casebres amontoados morro acima, de madeira, lata e até papelão. Crianças convivendo diariamente com as mais diversas espécies de verminoses e em contato direto com a falta de higiene, peculiar aos lugares onde a água é de luxo [...]” (ABREU apud Diário Mercantil, 1973, p. 12). Também o documento de regularização da posse da terra direcionada aos moradores do bairro pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento – IPPLAN/JF, assim descreve o lugar:
Quem chega pela primeira vez à Vila Olavo Costa não a diferencia de milhares de outros aglomerados de casebres apinhados entre tantos morros das cidades pelo Brasil afora. O que se vê são casas pobres espremidas entre barrancos e buracos. Ruelas que percorrem o morro, subindo e descendo, mais largas aqui, mais estreitas adiante, dando entrada a becos, que se ramificam em outros becos, que se ramificam entre outros becos que, por sua vez, se comunicam por escadas, rampas, trilhas irregulares. (PREFEITURA DE JUIZ DE FORA, 1988, p. 1)
Muitas das pessoas que lá foram morar se apropriaram da terra, sem terem a escritura de suas casas, energia elétrica ou até mesmo água encanada. A partir de 1959, começaram a chegar à Prefeitura “[...]os requerimentos de moradores pleiteando o título de propriedade” (PREFEITURA DE JUIZ DE FORA, 1988, p. 4). A Vila continuava crescendo e a necessidade de regulamentação das casas ia fazendo-se uma necessidade: “[...] a Vila virou um quarto de despejo, uma terra de degredo que, 450 anos depois, repetia o estigma da chegada das primeiras hordas à Terra de Santa Cruz.” (PREFEITURA DE JUIZ DE FORA, 1988, p. 6). O bairro crescia de forma desmedida e, ao mesmo tempo, não havia um controle de infraestrutura e planejamento para ele. Os barracos se multiplicavam cada vez mais, justamente no local onde havia o maior índice de concentração de pobreza.
A imprensa, representando as classes dominantes, constantemente pronunciava-se acerca da preocupação com o fenômeno favela em ocorrência na cidade, lamentando essa realidade. Por meio desses relatos, percebe-se a precariedade estrutural existente nesse ambiente que era reconhecido por esses meios. Porém, o que se vê é que a preocupação existente não era direcionada aos moradores e as condições de vida que eram impostas a essa população, mas sim ao incômodo que os favelados causavam a esses cidadãos:
Juiz de Fora foi uma cidade feliz. [...] Existe agora, [...] entre nós a ameaça de um problema que atormenta – e muito – a vida de uma cidade grande. Já começa a aparecer em Juiz de Fora uma favela [...]. Em pleno centro da cidade existe uma favela em formação. (ABREU apud Diário Mercantil, Juiz de Fora, 9/10 jul. 1967, p. 6).
Segundo Abreu (2010), com maior visibilidade e crescimento das favelas na cidade, as ações tomadas pelos representantes do poder público não eram medidas planejadas e pensadas para que essa população pudesse estar em lugares apropriados para habitar, mas as medidas adotadas foram sempre emergenciais. Essa população desfavorecida era pressionada a transferir-se de um lugar para o outro, muitas vezes sem condições dignas de moradia. Essa foi uma das realidades que fizeram com que mais moradores migrassem para a Vila:
O jornal Diário Mercantil denunciava que estes moradores foram expulsos de seu lugar de moradia e alojados em estábulos do Jóquei Clube, na zona leste da cidade, bem distante do centro urbano, com a promessa de que seriam transferidos para lotes o mais rápido possível. (Diário Mercantil, Juiz de Fora, 02 de ago. 1997, p.4). Entretanto, constatamos que os mesmos permaneceram por mais de um ano nos estábulos, até serem jogados na Vila Olavo Costa, zona sul da cidade, mais conhecida na época como “buraco do Olavo” (Diário Mercantil, Juiz de Fora, 22 de ago. 1978, p.9). (ABREU, 2010, p. 146)
Figura 2 - Foto do bairro Vila Olavo Costa no ano de 1974.
Figura 3 - Foto do bairro Vila Olavo Costa no ano de 1976.
O processo de ocultação da favela está na nomenclatura, mas, sobretudo, está historicamente no que tange ao fenômeno que a ele está encadeado. Nem na própria historiografia local encontramos com profundidade essa discussão.
Como a favela, ainda hoje, está umbilicalmente ligada à questão do “risco”, as classes dominantes criam, em cada momento, um discurso que vinha dando sustentação a suas práticas sócio-espaciais, baseando-se quase sempre nos ideários discriminatórios e segregacionistas. (CAMPOS, 2005, p. 70-71)
Esse episódio apresenta dois aspectos interessantes que me despertaram algumas reflexões acerca desse fato: a não utilização do termo favela para se referir ao bairro, mesmo o IBGE classificando como sinônimos os termos empregados às moradias subnormais e favelas, e as implicações que esse processo sócio-cultural provocam na construção da identidade linguística dos falantes desta comunidade. Inicialmente, a ocultação de um fenômeno social que está posto, mas não é discutido. Não se usa essa nomenclatura na cidade de Juiz de Fora para referir-se aos bairros periféricos. Entretanto, a negação desse fenômeno existente é também a negação dos habitantes desses lugares.
Sob a ótica de Abreu (2010, p. 148), “[...] certas faces do processo histórico- geográfico de configuração territorial de Juiz de Fora evidenciam a carga de preconceitos e de intolerância que culminaram na negação das próprias raízes sociais”. Sendo assim, há um desconhecimento dessa realidade que não é denominada, nem pelo poder público, nem pelos moradores dessas mesmas regiões.
O ATLAS SOCIAL - JUIZ DE FORA: DIAGNÓSTICO 2006) classifica os lugares mais pobres da cidade como “microáreas de exclusão social”, antes denominadas como áreas de “ocupação subnormal”. A autora ressalta que essa ocultação do fenômeno favela na cidade, dificulta o enfrentamento dessa situação de desfavorecimento socioeconômico de forma ativa e eficaz. Ao mesmo tempo, falar em favela remete a uma visão de questões relacionadas a miserabilidade, pobreza, violência, criminalidade, em outras palavras, a uma não cultura. Isso se reflete diretamente na constituição da identidade das crianças moradoras desses lugares. Ventura (2009, p. 213) esclarece:
O fato de serem crianças e adolescentes moradores de favelas é determinante para o diagnóstico pessimista. Por um lado, ser morador de favela, segundo o entendimento do senso comum, denota uma condição de carência econômica que impede a inserção social através do consumo de bens materiais, culturais e sociais.
A relevância atribuída à relação existente entre a língua e a sociedade nos seus aspectos, associadas às desigualdades sociais evidencia-se no interior da fala de Bortoni-Ricardo (2005, p. 36), que entende que “[...] a atribuição de prestígio a uma variedade linguística decorre de fatores de ordem social, política e econômica”. Por isso mesmo, a autora ressalta a necessidade de alunos e professores tornarem-se conscientes das diferenças linguísticas e culturais em uma comunidade, pois ambas as diferenças caminham de forma concomitante.
Esse entrecruzamento nos faz pensar na importância de se constituir, na escola, um espaço em que se possa refletir sobre essa interseção existente entre a natureza da linguagem e o lugar onde ela se origina e se constitui.
De certo modo, temos sido insistentemente ensinados a odiar a nossa língua e a desconhecê-la no seu sentido mais profundo e real, seja ele psíquico, social, econômico, histórico, político ou ideológico. Isso acontece tanto com aqueles indivíduos pertencentes a outro nicho social quanto com aqueles que, como eu, vêm dessa população de origem social desfavorecida e de linguagem desprestigiada.
Partindo desse pressuposto, coloco-me como sendo fruto de um meio social, no qual a variedade linguística que aprendi no meu contexto familiar é vista como desprestigiada e desvalorizada e, por conseguinte, o silenciamento desse falante está aí relacionado, por ser ele quem é. Além de sofrer com as debilidades do meio físico gerado por diversos fatores, sofremos por conta de uma ideologia que faz com que, inconscientemente, desconheçamos como legítimo esse lugar de vivência e, nesse aspecto, incluiu-se o uso vernacular de nossa linguagem, que se constitui como parte de nossa identidade e que não é legitimada diante da sociedade.
Indubitavelmente, sendo a língua um produto social (SAUSSURE, 1981), faz-se mister ressaltar que ela mesma “[...]é parte constitutiva da identidade individual e social de cada ser humano – em boa medida, nós somos a língua que falamos”, como discute Bagno (2003, p. 16-17).
A discussão sobre a relação da língua com a sociedade deve perpassar o contexto das práticas de ensino articuladas à realidade social da maioria dos alunos pertencentes às escolas públicas brasileiras, relacionando-se, dessa forma, como um movimento que promove possibilidades de desenvolver um novo olhar sobre o verdadeiro papel da língua na vida das pessoas.
A Sociolinguística me mobiliza e me possibilita estabelecer uma reconciliação comigo mesma, com a minha história e com esse lugar, que é meu, naquilo que tange a oportunidade de ter ingressado em uma universidade pública e a responsabilidade de ter me tornado pedagoga, sendo eu uma pessoa advinda e pertencente a esse meio social considerado desprestigiado.
Ter ingressado no curso de mestrado, possibilitou que a minha voz, a minha presença e a busca desse conhecimento linguístico e social, que muitas vezes é marginalizado, fossem também a voz daqueles que, em nossa sociedade excludente, não são vistos, nem ouvidos.
Durante meu curso de mestrado, busquei desenvolver uma pesquisa que procurou mostrar o desenvolvimento linguístico e a produção dos saberes de crianças e adolescentes moradores desse bairro e que pertencem a um projeto denominado Curumim, desenvolvido pela Associação Municipal de Apoio Comunitário – AMAC, da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora, no Estado de Minas Gerais. Essa associação tornou-se responsável pela execução de ações sociais, desenvolvendo trabalhos que envolvem projetos que podem diminuir a vulnerabilidade de indivíduos que se encontram em situações de risco social.
O trabalho realizado no Curumim desenvolve práticas de letramento que buscam valorizar a cultura dessas crianças, tantas vezes desprestigiada. Sobre esse movimento, os documentos oficiais destacam que um projeto educativo comprometido com a democratização social e cultural contribui para garantir a todos os saberes linguísticos que são necessários para o exercício da cidadania (BRASIL/SEF/MEC, 1998, p. 19).
Diante do trabalho que os Curumins vêm realizando para o desenvolvimento de habilidades sociais das crianças, acredito que uma ação voltada para a ampliação da sua competência comunicativa por meio das práticas da oralidade, pode fortalecer a construção de sentidos acerca da formação cidadã desses sujeitos.
A pesquisa foi realizada em uma turma onde aconteceram oficinas de teatro. A escolha por realizar essa investigação em uma oficina de teatro se deu porque, por meio dela, foi possível legitimar o vernáculo dos alunos na fala dos personagens, tendo garantida a oportunidade de eles, como atores, utilizarem as variedades cultas sobre as quais não têm domínio. Nesse caso, os personagens são falantes de variedades prestigiadas – norma urbana comum (PRETI, 1997, p. 17).
Estes entrecruzamentos me fizeram pensar na importância de se constituir, nos meios da Educação, diálogos interdisciplinares. Como no Curumim já havia um investimento nesse tipo de trabalho por meio das oficinas que eram organizadas e dos estudos que eram feitos, escolhi esse lugar para aprofundar o meu trabalho. Dessa forma, acredito que foi possível criar um caminho onde se pode ampliar as possibilidades de aprendizagem nas crianças/adolescentes, assim como as construções legítimas que elas fizeram do saber.
Considerando as discussões anteriores e com base na importância do trabalho com a oralidade no ensino, objetivei, nesta pesquisa, analisar se as práticas escolares de oralidade realizadas em um ambiente de educação não formal contribuem, efetivamente, para ampliar a competência comunicativa dos alunos.
O objetivo dessa proposta principal desta pesquisa, portanto, foi investigar se oficinas de teatro, como a do Curumim, ofereciam contribuições efetivas para o desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos. A partir desse objetivo principal, outros objetivos específicos se desdobraram:
Neles busquei comprovar se, por meio do trabalho com a oralidade através das oficinas de teatro, existia a possibilidade de se criarem formas de refletir sobre a linguagem, levando os alunos a avançar nos continua (rural/rurbano/urbano; letramento/oralidade; monitoração estilística) propostos por Bortoni-Ricardo (2004), sobre os quais me deterei mais à frente.
Também procurei confirmar se seria possível criar crenças positivas nos alunos acerca do seu próprio vernáculo por meio das práticas de letramento, contribuindo para que tivessem consciência da variação linguística e das suas possibilidades.
Para abordagem dessas questões aqui explicitadas, no capítulo I, faço a revisão de literatura por meio de bibliografias que trataram de temas importantes relacionadas a essa área de conhecimento. No capítulo II, apresento o aporte teórico que subsidiou este trabalho por meio da reflexão sobre língua enquanto instituição através da qual o sujeito constrói sua identidade; reflito sobre o desenvolvimento das teorias (sócio) linguísticas, sobre as concepções do termo alfabetização e letramento, assim como sobre as reflexões acerca da oralidade e do teatro. No capítulo III, apresento a metodologia adotada para a elaboração desse trabalho. Por fim, no capítulo IV, apresento as análises da pesquisa realizada nas oficinas de teatro desenvolvidas no Curumim.
2 REVISÃO DE LITERATURA
Faço, neste capítulo, um levantamento de pesquisas que vêm sendo desenvolvidas no âmbito do teatro e da linguagem, buscando tratar desses dois temas de formas complementares. Para isso, busquei trabalhos em bancos de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), nos anais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED) e nos bancos de teses e dissertações de instituições de Programas de Pós-graduação (USP, UERJ, UFRJ, PUC/SP).
Constatei que algumas pesquisas contemplam o teatro na perspectiva da reflexão linguística desenvolvidos na compreensão dessa área de conhecimento. Encontrei-as nos bancos de teses das Universidade de São Paulo (USP), da UNISAL e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
Na dissertação realizada na USP, intitulada “Hora da leitura: práticas teatrais para a exploração de textos literários nas aulas de língua portuguesa”, Regina Aparecida Resek Santiago (2008) analisa um grupo de professores que participaram de um projeto denominado Hora da Leitura do Estado de São Paulo, com os alunos do segundo ciclo do ensino fundamental. Esses professores, através da leitura de textos literários, buscaram trabalhar articuladamente com as práticas de leitura e as de teatro nesse projeto, embasados nas teorias linguísticas e nos jogos de improviso. Os dados obtidos pela pesquisa de Santiago foram obtidos a partir de questionários e das respostas elaboradas pelos 41 professores entrevistados.
Sua pesquisa constatou que os professores de português não têm tido tempo para refletir sobre o ensino de língua portuguesa e a formação de leitores; no entanto, os alunos necessitam desenvolver esses saberes em sala de aula. As atividades também demonstraram que a leitura do texto literário por meio das práticas teatrais leva as aulas a terem um caráter humanizante, pois colocam os alunos em contato consigo mesmos, uns com os outros e com o ambiente a sua volta.
Bibiano Francisco Elói Júnior pesquisou, pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo, “O jogo teatral como metodologia no processo de ensino-aprendizagem”. Esse trabalho procura encontrar no jogo teatral aliado à educação, possibilidades de se abordar metodologias de ensino que auxiliem o envolvimento dos alunos no processo ensino-aprendizagem. O trabalho associa os processos artísticos como o teatro a com uma proposta metodológica de ensino por meio de uma pesquisa teórica e exploratória, não como disciplina individual de ensino, mas como contribuição no desenvolvimento amplo da aprendizagem aliado a outros saberes.
Outra dissertação, desenvolvida na PUC/SP, denominada “A atividade aula de teatro como instrumento na produção de conhecimento” realizada por Dionéia Menin da Silva Oliveira (2011) elege a Linguística Aplicada como base teórica para o desenvolvimento da pesquisa dentro da perspectiva sócio-histórico-cultural, para analisar, socialmente, como os alunos atores constroem seus personagens na atividade social das aulas de teatro.
Nas suas observações, a pesquisadora adotou a perspectiva da Teoria da Atividade de cunho colaborativo, realizando observações, gravações das aulas de teatro e coletando depoimentos dos professores e alunos. Delimitou a análise escolhendo como corpus as aulas de musicais realizados em 2009 e 2010. Igualmente, coletou as produções escritas com a descrição dos seus personagens, assim como o depoimento deles sobre as aulas de teatro.
Os dados revelaram que o jogo teatral aplicado à educação contribui para mobilizar a criatividade, humanizar os envolvidos no processo de criação, refinar o contato dos alunos com o mundo e torná-los capazes de mobilizar e aplicar os conhecimentos de forma interdisciplinar.
Os apontamentos destacados nessas pesquisas caminham em direção a alguns dados obtidos na minha dissertação, naquilo que tange as comprovações sobre os benefícios individuais e sociais que o teatro traz, além da autonomia que os alunos desenvolvem em relação a si mesmos.
2.1 Introdução aos estudos da linguagem
A língua, no seu uso prático, é inseparável do seu conteúdo ideológico ou relativo à vida. (BAKHTIN, 2006, p. 96)
O filósofo e linguista suíço, Ferdinand de Saussure, que teve o seu trabalho escrito postumamente por seus alunos, em 1916, intitulado Curso de linguística geral, inaugurou a linguística como ciência. Suas reflexões proporcionaram um avanço nos estudos linguísticos, promovendo o surgimento do Estruturalismo. Esse estudo, todavia, ancorou-se nas reflexões sobre a morfologia e a fonologia (CALVET, 2002).
Com a linguística moderna, Saussure declara que a língua é um modelo abstrato, sendo que o seu único objeto é a língua em si mesma e por si mesma. Em seus estudos, Saussure afirma que a língua é um fator social, pois ela é elaborada na sociedade, somente por isso é social. Porém, ele a apresenta em outra perspectiva, pois não se debruça sobre a reflexão a respeito da mutabilidade da língua - que constitui a parole - e sim do sistema - que diz respeito à langue.
Contudo, Antoine Meillet, conhecido como um dos discípulos de Saussure, critica alguns aspectos defendidos pelo mestre. Após a publicação do Curso de Linguística Geral, Meillet declara que “[...] ao separar a variação linguística das condições externas de que ela depende, Ferdinand de Saussure a priva da realidade; ele a reduz a uma abstração que é necessariamente inexplicável” (apud CALVET, 2002, p. 14). Meillet acredita que, ao mesmo tempo em que a língua é um fator social, é também “[...] um sistema que tudo contém” (apud CALVET, 2002, p. 16). Para ele, é necessária a diacronia, referência à história, mas também a sincronia para que haja de fato a compreensão dos aspectos da língua. Sobre isso, afirma (op. cit., p. 15)
[...] a afirmação do caráter social da língua que se verifica em Meillet implica ao mesmo tempo a convergência de uma abordagem interna e de uma abordagem externa dos fatos da língua e de uma abordagem sincrônica e diacrônica desses mesmos fatos. Quando Saussure opõe linguística interna e linguística externa, Meillet as associa; quando Saussure distingue abordagem sincrônica de abordagem diacrônica, Meillet busca explicar a estrutura pela história.
Nesse campo, encontramos alguns estudiosos que, por meio das suas investigações, contribuíram para a construção de uma concepção mais social da língua e mais sociológica da Linguística. Dentre eles, encontramos os filósofos alemães Johan Gottfried Herder e Humboldt, o linguista-etnólogo Edwar Sapir, o antropólogo Franz Boas, o linguista e antropólogo Benjamin Lee Whorf, o linguista russo Mikhail Bakhtin, o linguista francês André Martinet, aluno de Meillet, o linguista polonês-americano Uriel Weinrich e o linguista americano William Labov, conhecido como o pai da Sociolinguística (CARBONI, 2008).
No entanto, mesmo ao iniciarem-se algumas discussões a respeito do aspecto social contido na língua, temos a afirmação e um novo olhar voltados para essas questões com o linguista William Labov, na década de 1960. Ele declara que a Linguística, por si só, tem um caráter social e a Sociolinguística nada mais é do que o retorno a essa natureza, pois, “[...] se a língua é um fato social, a Linguística então só pode ser uma ciência social, isso significa dizer que a Sociolinguística é a Linguística (CALVET, 2002, p.12). Desse modo, não é mais possível pensar no estudo da Linguística dissociada dos aspectos eminentemente sociais a pertencem e constituem, isso, portanto, vai para além das questões relacionadas à pesquisa, sendo possível transpor a sua aplicabilidade no contexto escolar e usual.
2.2 A língua como identidade do sujeito
A linguagem é parte constituinte de todo ser humano, um instrumento essencial de interação e comunicação (MARTINET, 1971). Segundo Bagno (2003), nossa relação com a linguagem não se resume a simples usuários da língua. A linguagem ultrapassa a relação de simples uso, pois ela é muito mais profunda e complexa, para a limitarmos à relação somente de seus usuários. Ela não está fora de nós, como se fosse apenas um instrumento de utilização social, como “[...] uma espécie de ferramenta que a gente pode retirar de uma caixa, usar e depois devolver à caixa” (BAGNO, 2003, p.17). A língua é parte de quem somos.
Historicamente, vemos que a língua, durante anos, foi vista como uma prática externa, sendo algo fora do ser humano, abstrata, reforçando ainda mais a ideia de sua forma inacessível, como se tivéssemos que falar como escrevemos, sendo marcada fortemente pelas regras gramaticais.
Essa concepção abstrata e reducionista de língua>norma>gramática é tão antiga que já se tornou parte integrante das crenças e superstições que circulam na sociedade. É essa cadeia sinonímica equivocada que permite a muita gente acreditar que o manual de gramática e o dicionário contêm as únicas possibilidades de uso da língua, como se fosse possível encerrar em livro toda a complexidade que governa as relações dos seres humanos entre si e consigo mesmos por meio da linguagem. (BAGNO, 2003, p. 20-21).
Em contrapartida, conforme já anunciavam Meillet e Martinet, conforme vimos acima, temos outra concepção que vê a língua enquanto um produto sócio-histórico que existe por meio dos falantes e é um fenômeno social intrínseco a todo o ser humano
Ora, a língua como uma “essência” não existe: o que existe são seres humanos que falam línguas. A língua não é uma abstração: muito pelo contrário, ela é tão concreta quanto os mesmos seres humanos de carne e osso que se servem dela e dos quais ela é parte integrante. (BAGNO, 2003, p. 23).
Nesse sentido, Calvet (2002) também ressalta que a língua não existe sem as pessoas que a falam e que a história de uma língua é a história de seus falantes. Bakhtin (2006) afirma que a palavra carrega em si um conteúdo e um sentido ideológico ou vivencial. Ela é marcada por um processo histórico, social e cultural por meio da sua própria constituição. Sendo assim, a palavra traz em si a característica identitária de cada sujeito que a pronuncia.
A concepção bakhtiniana sobre a linguagem vislumbra um sujeito que a concebe numa relação dialógica, por meio da interação com o outro. Dessa forma, “[...] é no interior do complexo caldo da heteroglossia e de sua dialogização que nasce e se constitui o sujeito” (FARACO, 2010, p. 84). De acordo com Bagno (2009, p. 13), a língua é “[...] a atividade linguística real dos falantes em suas interações sociais.”
Nesse sentido, não é possível se pensar a língua, separada do falante. Dessa forma, o ensino de língua, também precisa ser pensado associado às interações e vivências desse sujeito que produz e reconstrói continuamente a sua própria linguagem.
2.3 A Sociolinguística
O grande nome nas pesquisas na área Sociolinguística foi o linguista William Labov que investigou a variação linguística, trazendo, como consequência, a mudança no entendimento sobre como os falantes utilizam a língua.
A Sociolinguística, portanto, procura lidar com a pluralidade linguística realizada pelos falantes de uma língua. Ela é conhecida como “[...] uma ciência que procura relacionar as variações linguísticas que ocorrem entre os falantes de uma mesma língua às diferenças que se observam na estrutura da sociedade a que pertencem esses mesmos falantes” (CYRANKA, 2011, p. 38).
A partir desse aspecto, também se reconhece o caráter heterogêneo e plural da língua, assim como o seu reconhecimento dinâmico inerente. Toda língua passa por mudanças todo o tempo, é seu estado natural. Por isso, lembra (MOLLICA, 2003, p. 10):
A sociolinguística considera em especial como objeto de estudo exatamente a variação, entendendo-a como um princípio geral e universal, passível de ser descrita e analisada cientificamente. Ela parte do pressuposto de que as alternâncias de uso são influenciadas por fatores estruturais e sociais.
A Sociolinguística aplicada à educação, conhecida como Sociolinguística Educacional, foi um termo cunhado pela pesquisadora Stella Maris Bortoni-Ricardo (2004), sendo uma área teórico-prática da Sociolinguística relacionada ao saber escolar.
A relação estabelecida entre língua e sociedade apresenta uma concepção que influencia o ensino de língua, tomando-a como intrinsecamente heterogênea, múltipla, variável, instável, que está sempre em desconstrução e em reconstrução, como ressalta, Bagno (2007). Este autor ainda acrescenta:
A variação e a mudança linguística é o que são o “estado natural” das línguas, o seu jeito próprio de ser. Se a língua é falada por seres humanos que vivem em sociedades, se esses seres humanos e essas sociedades são sempre, em qualquer lugar e em qualquer época, heterogêneos, diversificados, instáveis, sujeitos a conflitos e a transformações, o estranho, o paradoxal, o impensável seria justamente que as línguas permanecessem estáveis e homogêneas (BAGNO, 2007, p. 37).
Portanto, a polêmica existente em torno da variação, que tantos leigos pensavam ser um problema da língua, na verdade, não o é, pois a mutabilidade é um fenômeno que ocorre de forma natural e progressiva com o passar do tempo, justamente por se tratar de um ato social. O problema está é na ideologia estabelecida de que existe ou existiu uma língua perfeita, idealizada que deve ser alcançada. Segundo essa ideologia, todas as manifestações escritas e orais que não estejam vigentes nessa língua pré-estabelecida são consideradas ilegítimas.
Ao contrário, existe uma legitimidade na variação. Não são aleatórias as construções linguísticas realizadas pelos falantes nativos de uma língua, e sim, deve-se reconhecer, nessas estruturas de linguagem, fatos cientificamente explicáveis e historicamente justificados. Além disso, é preciso considerar que a variação não ocorre de forma desordenada, ela é estruturada de acordo com suas propriedades sistêmicas e é contextualizada com regularidade. E mais: são diversos os níveis da língua alcançados pela variação, seja ela fonética, fonológica, lexical, morfológica, sintática, semântica ou pragmática. É preciso insistir: todos esses níveis de variação, ao contrário do que possa ser pensado, são feitos de forma ordenada, estruturada e organizada pelos mais diversos fatores, inclusive os extralinguísticos. Ao falar, o falante estabelece regras que são previsíveis e legítimas.
A heterogeneidade tem a ver, então, com essa característica fascinante da língua, o fato dela ser altamente estruturada, de ser um sistema organizado e, sobretudo, um sistema que possibilita a expressão de um mesmo conteúdo informacional através de regras diferentes, todas igualmente lógicas e com coerência funcional. E mais fascinante ainda: um sistema que nunca está pronto, que o tempo todo se renova, se recompõe, se reestrutura, sem todavia nunca deixar de proporcionar aos falantes todos os elementos necessários para a sua plena interação social e cultural. (BAGNO, 2007, p. 43).
Existem, portanto, forças internas, chamadas centrífugas que levam as línguas a um movimento natural de mudança para uma forma-função nova.
Esse é um movimento ininterrupto: qualquer língua viva no mundo, neste exato momento, está em processo de mudança, mesmo que isso seja imperceptível para os seus falantes, muito embora sejam eles mesmos os responsáveis pela mudança. (BAGNO, 2003, p. 122).
Insistindo nessa verdade, Bagno (op. cit., p. 118) afirma que “[...] enquanto houver gente falando uma língua, essa língua vai sofrer variação e, consequentemente, vai sofrer mudança”, porque são os falantes de uma língua que a mudam, mesmo sendo esse processo um ato inconsciente.
Língua e variedade caminham de forma concomitante. Sobre isso, Faraco (2008, p. 71-72) reflete:
[...] qualquer língua é sempre heterogênea, ou seja, constituída por um conjunto de variedades (por um conjunto de normas). Não há, como muitas vezes imagina o senso comum, a língua, de um lado, e, de outro, as variedades. A língua é em si o conjunto das variedades. Ou seja, elas não são deturpações, corrupções, degradações da língua, mas, são a própria língua: é o conjunto de variedades (de normas) que constitui a língua.
No Brasil, além de toda a diversidade geográfica, socioeconômica, de gerações, de escolaridade, de gênero, de mercado ocupacional, entre outros, que determinam mudanças no modo de falar entre as pessoas, existem muitas línguas diferentes, o que confere a este país, além do mais, o caráter multilíngue.
2.4 Língua e norma
Por volta de 1950, Eugênio Coseriu incluiu, na dicotomia langue/parole, sistema/fala, uma perspectiva tricotômica (sistema/norma/fala), aperfeiçoando o recorte teórico existente até então e criando o conceito de norma. Ele conservou a visão estruturalista, porém, Faraco (2008) lembra que a forma como a norma está organizada, permite que o sistema linguístico lhe dê distintas possibilidades:
É possível, então, conceituar tecnicamente norma como determinado conjunto de fenômenos linguísticos (fonológicos, morfológicos, sintáticos e lexicais) que são correntes, costumeiros, habituais numa dada comunidade de fala. Norma nesse sentido se identifica como normalidade, ou seja, com o que é corriqueiro, usual, habitual, recorrente (“normal”) numa certa comunidade de fala (FARACO, 2008, p. 35).
Por isso, qualquer que seja o modelo teórico posto – estruturalista, gerativista, sociolinguista ou dialetológico -, ele se adequa às diferentes possibilidades variacionais que compõem a língua.
Os grupos sociais, todos sabemos, se diferenciam pelas suas diversas maneiras de usarem a própria língua, por isso também haverá, em nossa sociedade estratificada, uma diversidade relacionada às normas linguísticas. Faraco (2008, p. 41) nos fala das “[...] normas características de comunidades rurais tradicionais, aquelas de comunidades rurais de determinada ascendência étnica, normas características de grupos juvenis urbanos, normas características de periferias urbanas [...]” entre outras. Sendo assim, um mesmo falante, pode dominar mais de uma norma.
A norma denominada culta é classificada, segundo esse autor (2008, p. 71.) como um “[...] conjunto de fenômenos linguísticos que ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados em situações mais monitoradas de fala e escrita”, aos quais os falantes são levados a atribuir valores sociais positivos. Pesquisas como as realizada pelo projeto NURC (Norma Linguística Urbana Culta) no Brasil têm nos ajudado a compreender quem são esses falantes cultos.
As pesquisas do Projeto NURC se iniciaram na década de 1970, tomando como base para a constituição de corpus, a variável escolaridade. Para isso, foram selecionados, para entrevistas gravadas, os falantes que tivessem formação universitária completa. Preti (2005) declara que os resultados revelados foram surpreendentes, pois os falantes cultos, em situações espontâneas e monitoradas, apresentaram um discurso que, em grande parte, se assemelhava ao do falante urbano comum.
Segundo Faraco (2008), ainda que não tenhamos uma gama de dados sociolinguísticos e dialetológicos acerca da constituição do português falado no Brasil, temos pesquisas que têm nos ajudado a compreender a variedade da língua, como as apresentadas pelo projeto NURC (Norma Linguística Urbana Culta).
Também Bortoni-Ricardo (2004) grande contribuição trouxe para esse cenário de pesquisa, ao apresentar uma proposta para a análise sociolinguística do português brasileiro, através da adoção de um modelo de 3 contínuos: o de urbanização, o de oralidade-letramento e o de monitoração estilística. No contínuo de urbanização, encontramos, na extremidade esquerda, os falares rurais e, na da direita, os falares urbanos. No espaço entre eles, encontramos os falares rurbanos, característicos dos indivíduos que migram da zona rural para os centros urbanos, porém preservando traços linguísticos e culturais dos seus antecedentes.
Esse contínuo de urbanização pode ser representado da seguinte forma:
-------------------------------------------------------------------(
rural rurbano urbano
O contínuo de oralidade-letramento também é representado por uma linha, na qual se encontram os eventos de oralidade, na extremidade esquerda, e os eventos de letramento, na extremidade da direita. Considere-se, portanto, a influência da língua escrita em ambos os tipos de evento, já que os eventos de oralidade não são sempre informais. Podemos encontrar eventos de oralidade que são, também, de letramento aproximando-se muito da língua escrita ou mesmo pautados nela, como um discurso político ou um sermão religioso.
O contínuo de oralidade-letramento pode ser assim representado:
------------------------------------------------------------------------(
oralidade letramento
Já no contínuo de monitoração estilística, distinguem-se, na extremidade esquerda, as interações espontâneas e, na extremidade direita, aquelas que exigem maior grau de planejamento, dependendo de fatores que ocorrem no momento da interação verbal.
Esse contínuo pode ser representado da seguinte forma:
------------------------------------------------------------------------(
- monitorado + monitorado
As conclusões do projeto NURC, aliás, já haviam mostrado que a linguagem dos falantes classificados de “cultos” é aquela que se assemelha à linguagem monitorada do falante urbano comum. Faraco (2008, p. 47) retoma essas conclusões:
Encontramos aqui um primeiro critério para identificar o fenômeno linguístico a que se dá o nome de norma culta: ela seria a variedade de uso corrente entre falantes urbanos com escolaridade superior completa em, em situações monitoradas. Ou seja, a norma culta seria pelos critérios do NURC, a variedade que está na intersecção dos três continua em seus pontos mais próximos do urbano, do letramento e dos estilos mais monitorados.
Norma culta, portanto, se difere da norma-padrão. Faraco lembra que o conceito de norma-padrão começou a surgir no final do século XV na Europa, impulsionado pela necessidade da unificação linguística da própria sociedade feudal que se modernizava. Sendo assim “[...] a unificação e a centralização política tiveram um efeito centrípeto também sobre a língua [...]”( FARACO, 2008, p. 72).
No entanto, a característica descentralizadora dessa sociedade e os vínculos de comunicação por causa da economia que se mantinham fora dos feudos trouxeram, como consequência, a diversidade linguística. Essa mudança no mapa linguístico provocou a busca da criação de um projeto que fosse padronizador. Buscou-se, desde então,
[...] por meio de elementos normativos (gramáticas e dicionários), um padrão de língua para os Estados Centrais Modernos, de modo a terem eles um instrumento de política linguística capaz de contribuir para atenuar a diversidade linguística regional e social herdada da experiência feudal. A essa experiência damos hoje o nome de norma-padrão. (FARACO, 2008, p.73).
Podemos, desse modo, perceber a distinção existente entre os conceitos de norma culta e norma-padrão que tantas vezes se confundem, mas que são distintos. Nos mostra Faraco que a norma culta “[...] é a variedade que os letrados usam correntemente em suas práticas mais monitoradas de fala e escrita” [...] e a norma-padrão [...] “um construto sócio-histórico que serve de referência para estimular um processo de uniformização”. (FARACO, 2008, p. 73).
O autor ainda destaca (op. cit. p. 172):
Se as variedades cultas, em suas modalidades orais e escritas, são manifestações de uso vivo (normal) da língua, a norma-padrão – quando existe em determinada sociedade – é um construto idealizado (não é um dialeto ou um conjunto de dialetos, como o é a norma culta, mas uma codificação taxionômica de formas tomadas como um modelo linguístico ideal).
Entendemos, então, que “[...] a norma-padrão é uma codificação relativamente abstrata, uma baliza extraída do uso real para servir de referência, em sociedades marcadas por acentuada dialetação, a projetos políticos de uniformização linguística” (FARACO, 2008, p. 73).
Na sessão seguinte, discutiremos alguns dos impactos da aplicação dessas normas no desenvolvimento da prática pedagógica escolar com a língua materna.
2.5 O ensino de língua no Brasil: o que é que se ensina? O que é que se aprende?
É consensual que o aluno, ao inserir-se na escola, é conhecedor dessa língua que lhe é familiar, aprendida com aqueles que lhe são mais próximos. Cagliari (1991, p. 19) afirma que “[...] uma criança que entra para a escola pela primeira vez, aos 7 anos, já trilhou um longo caminho linguístico, já provou, no dia a dia, um conhecimento e uma habilidade linguística muito desenvolvidos”.
No entanto, esse conhecimento legítimo da língua se restringe, de certa forma, à linguagem oral, mesmo lidando direta ou indiretamente com o sistema notacional. O mesmo autor afirma que o aluno sabe algumas coisas sobre a língua, mas não sabe outras. Desse modo, é possível e necessário perceber e realizar um trabalho sistemático no ensino de língua materna.
Nesse contexto, a escola torna-se responsável em proporcionar a esse aluno instrumentos para que ele possa aprimorar essa linguagem verbal já apreendida por ele, através do monitoramento estilístico e da própria aquisição do sistema de escrita alfabético.
Tratar o ensino de língua portuguesa como o ensino de língua estrangeira, como vemos e ainda encontramos em algumas instituições educacionais, é artificializar a língua e afastá-la cada vez mais dos seus falantes. Lidar com o aluno como se ele não tivesse conhecimento sobre o objeto de ensino, que é a língua, é uma atitude incorreta. Cagliari (1991, p. 17) insiste na necessidade de se ter consciência de que o falante nativo de uma língua já dispõe de um vocabulário e de regras gramaticais bem antes de entrar na escola:
Qualquer criança que ingressa na escola aprendeu a falar e a entender a linguagem sem necessitar de treinamentos específicos ou de prontidão para isso. Ninguém precisou arranjar a linguagem em ordem de dificuldades crescentes para facilitar o aprendizado da criança. Ninguém disse que ela devia fazer exercícios de discriminação auditiva para aprender a reconhecer a fala ou para falar. Ela simplesmente se encontrou no meio de pessoas que falavam e aprendeu.
Quantas vezes ouvimos os alunos dizerem que não gostam ou não sabem português? Mas como não sabem falar o português se são falantes naturais da língua? A que tipo de (não) conhecimento linguístico esses alunos se referem?
Nossas escolas, muitas vezes, insistem em ensinar um conteúdo que, por fim, não é aprendido pelos alunos, destoando da realidade linguística falada no português do Brasil, inclusive pelos falantes cultos.
A manutenção da ideologia da norma-padrão, que se afasta do uso real da norma popular e até da norma culta, pode explicar, segundo Lucchesi (2002), o insucesso do modelo de um padrão linguístico pedagógico adotado por grande parte das escolas.
O tempo de escolarização de um estudante hoje no Brasil é em torno de 12 anos em contato formal com o ensino de língua materna. Como pode, então, esse aluno não ter sido instrumentalizado para fazer um uso reflexivo dessa língua que faz parte da sua própria constituição enquanto sujeito? O que nossas escolas têm priorizado como objeto de ensino? Cagliari (1991, p. 23-24) discute:
O aluno passa anos e anos, diariamente, em salas de aula de português, e o que aprende? Sempre as mesmas coisas: o que significa a palavra...telúrico? Como se escrevem as palavras...exceção, extenso e estender? Qual o plural de...cidadão? A que categorias gramaticais pertencem as palavras... mal e mau? O que é um substantivo... concreto, abstrato? Qual o coletivo de ...lobo? Qual o sujeito das orações /.../ “caiu no jardim a bola”/.../ e finalmente: “Faça uma redação sobre o retrato de um cego”.
Essa reflexão do autor nos leva a refletir que, de fato, o estudo de português, frequentemente, tem se resumido nisso. Ele continua sua crítica ao sistema escolar que trabalha com o jogo de perguntas e respostas, com o exemplo de uma criança que responde apaioa, a avoa, atioa, para os femininos de pai, avô e tio. Certamente, uma criança de 7 anos de idade, falante natural do português, sabe o gênero gramatical dessas palavras. Portanto, mesmo sabendo dos pares, a criança arrisca uma solução que não parece tão óbvia, seguindo o esquema proposto pela escola, que emite uma linguagem institucionalizada.
Esse mesmo autor (1991) ainda aponta que o problema no ensino de português não é relacionado somente ao que é ensinado, mas também se torna falho, porque se deixa de ensinar muita coisa. Para que se mantenham conteúdos como esses que são citados nos currículos da grade escolar, outros são retirados. São profundamente arraigados, nas escolas, os estudos que giram em torno da Morfologia e da Sintaxe e pouco se aprofunda e se trabalha com os estudos que privilegiam a Fonética, a Fonologia, a Sociolinguística. Apesar de os alunos permanecerem na escola durante anos em que estudam o português, eles saem dela sem saberem como falam, porque assim falam e quais são as outras possibilidades de falarem a sua própria língua.
É papel da escola, no entanto, proporcionar ao aluno, por meio da educação linguística, o conhecimento sobre a sociedade em que vivemos, assim como a reflexão sobre o que essa mesma sociedade espera de cada indivíduo linguisticamente e sobre o que esse aluno pode fazer quando utiliza determinada variedade do português (CAGLIARI, 1991).
Para a democratização do ensino de língua, a reflexão linguística nas escolas é uma estratégia importante, principalmente para aqueles alunos oriundos de classes populares, cuja linguagem constitui o principal alvo da crítica no ambiente educacional.
Ao mesmo tempo, devemos ainda refletir que a língua oficial, que também é conhecida como língua do Estado - definida por Barbaud (2002, p. 256) como “[...] uma fórmula descritiva dotada do poder de generalizar a maioria dos usos que são governados pela norma linguística, por exemplo, o francês dito universal”, - deve ser reconhecida e apreendida pelos alunos, pois, segundo esse autor, os falantes nativos de uma língua têm o direito de tomarem posse dela. É, portanto, dever do Estado ensinar essa língua e é direito do aluno, poder apropriar-se dela. Sobre isso, assim se expressa Barbaud (2002, p. 278):
Finalmente só há uma escolha possível para o Estado que deseje atenuar as tensões ligadas à realidade linguística de nossa época: reduzir as desigualdades sociais na esperança de, com isso, conseguir diminuir as discriminações ocasionadas pelo uso legítimo da língua.
O que se espera, por esse processo, é que o Estado exerça seu real papel social, responsável pela formação plena dos seus cidadãos. E a esses é dada a oportunidade de encontrarem possibilidades de crescerem, assumindo a sua identidade, se reconhecendo como sujeitos pertencentes a sua sociedade e (re) construtores dela.
2.6 O caminho da alfabetização no século XX
A educação é uma ferramenta para a própria libertação do povo. Se ela é integral e direcionada para a formação do povo, inclusive política, este irá perceber as contradições e o descaso do poder público. Isso interessa a quem? (BARBOSA, 2009)
A trajetória percorrida pela educação no Brasil é historicamente marcada por uma grande desigualdade, porque exclui as classes populares da sociedade. Vemos, ao longo da história, o privilégio obtido pelos grupos socialmente favorecidos em suas possibilidades de inserção e permanência na escola, o que auxilia na cristalização do seu papel dominante no meio social. Segundo considerações de Moll (1996, p. 9), “[...] a história da rede pública no Brasil é uma história de seletividade. A instituição escolar tem funcionado como um espaço social cujo papel é colaborar para a manutenção da forma como a sociedade está organizada”. Isso justifica as grandes dificuldades encontradas pelo aluno da rede pública em manter-se na escola e obter êxito no seu desenvolvimento.
Propomos, a partir deste ponto de nossas reflexões, elaborar uma síntese de alguns aspectos importantes da história da educação/alfabetização no Brasil nas últimas décadas do século XX, buscando, assim, compreender, em parte, por meio do caminho histórico, político e social que foi percorrido até o determinado momento, os aspectos da educação que hoje vivenciamos, . Essa reflexão nos faz reconhecer as ações políticas implementadas que procuraram, ao longo do tempo, favorecer a inserção do aluno na escola e erradicar do País o analfabetismo, com seus altos índices, o que sempre esteve intimamente relacionado à exclusão social da população. Rojo (2009) aponta que, durante quase todo o século XX até a década de 1990, essa foi a relação que a escola teve com as classes populares.
No início do século XX, em 1916, na cidade do Rio de Janeiro, foi organizado um movimento chamado Liga Brasileira Contra o Analfabetismo. Essa Liga foi formada por homens letrados de diversos setores da sociedade, com o objetivo de mobilizar o poder público e a população para que o analfabetismo fosse erradicado do país, em comemoração ao centenário da Independência do Brasil, que ocorreria em 1922 (NOFUENTES, 2009).
De acordo com Freire apud MOLL (1996, p. 22), essa Liga trazia consigo, de forma explícita, a “ideologia da inferioridade intrínseca do analfabeto”. Numa sociedade em que os alfabetizados, em sua maioria, eram homens brancos, grande parte da população brasileira encontrava-se excluída desse privilégio e, ao mesmo tempo, estava marcada pelo analfabetismo de forma estigmatizadora.
Com a instalação da Liga no Estado da Bahia em 1916, foram utilizadas expressões que faziam parte da ideologia da Liga nacional para combater o analfabetismo, tais como: “muralhas do obscurantismo”, “expurgar-se a praga-negra”, “maior inimigo do Brasil”, “libertar do cativeiro do analfabetismo”, “vergonha que não pode continuar”, “cancro social de nossa prática”, “mais funesto de todos os males”, “guerra de morte” (MOLL, 1996, p. 22). A formulação dessas expressões certamente trouxe consigo a exposição do extenso caos que o analfabetismo no Brasil representava e como essa situação era então vista. Mas, sobretudo, trouxe, de forma justaposta, o peso dessa marca para aquele indivíduo que não era alfabetizado.
Apesar das iniciativas educacionais, como o movimento da Liga no período do “entusiasmo pedagógico” (NAGLE, 2001), a escola ainda continuou sendo um espaço privilegiado das classes dominantes. No final da década de 1920, por exemplo, cerca de 75% da população brasileira ainda não era alfabetizada. Nessa mesma década, de acordo com Cury (2001), houve um discurso revisionista do deputado Tavares Cavalcanti que reivindicava, juntamente com outros intelectuais, a necessidade de uma intervenção da União no Ensino Primário, para que essa situação de analfabetismo da população brasileira se findasse:
O analfabeto era, para ele, a raiz da situação crítica da economia brasileira, sendo necessário superar o círculo vicioso segundo o qual o analfabetismo não é combatido porque não se tem meios, e não se tem meios porque ¾ da população é analfabeta. (CURY, 2001, p. 97).
Além disso, percebemos o quanto recaía sobre o povo (de forma indireta) a responsabilidade pelo crescimento do país. Segundo Cury (2001), Tavares Cavalcanti acreditava que o analfabetismo refreava o desenvolvimento e o progresso econômico no Brasil. Em seu discurso, é clara a atribuição de responsabilidade dada à escolarização pela mudança social, sendo que a União deveria direcionar e assumir essa educação, para que a crítica situação se revertesse.
Já nos primeiros anos da década de 1930, surge o movimento da Escola Nova apresentando propostas para a solução dos problemas relativos ao ensino no Brasil, discutindo a seletividade estrutural do sistema educativo e alinhando-se ao sistema liberal da época. Apesar da boa elaboração do seu discurso, a escola elementar não sofreu mudanças significativas em sua estrutura (MOLL, 1996).
Ainda na década de 1930, no governo de Getúlio Vargas, surge a criação do Ministério de Educação e Saúde e dos Conselhos Nacional e Estadual de Educação. Nesse período, vemos que há uma preocupação com relação às questões do ensino, com algumas leis sendo elaboradas.
Na década de 1940, metade dela representada pelo período ditatorial, segundo Moll (1996), encontramos a educação brasileira dividida entre a formação profissional e a formação científica, a primeira destinada às classes populares, as quais deveriam ser preparadas para as relações de produção, e a segunda destinada às elites.
Com a instauração do Fundo Nacional de Ensino Primário, a partir da Constituição de 1946, tem-se a garantia da expansão do ensino primário e a obrigatoriedade escolar, mas a expansão quantitativa da escola ainda não garantia a qualidade e as necessidades específicas para os alunos das camadas populares.
Por conseguinte, durante o período da Ditadura Militar de 1964-1985, surge a Operação-Escola, tornando-se um instrumento de diagnóstico para o ensino no Brasil. No entanto, de acordo com Foina (apud MOLL,1996), esse diagnóstico foi parcial, devido ao momento histórico vivenciado no País. Não houve uma orientação adequada para a resolução das necessidades reais da escola. Dentro dessas medidas, apresentava-se a expansão da rede escolar, a reformulação parcial do sistema de avaliação, a promoção e agrupamento de alunos, a adequação dos programas às diferenças individuais do educando e o incentivo ao aperfeiçoamento do ensino primário.
Mais adiante, com o Plano setorial de Educação e Cultura 1972-1974, o Ministério da Educação e Cultura declara a universalização do Ensino Fundamental gratuito e obrigatório para aqueles que estavam na faixa etária dos 7 aos 14 anos e, para os adolescentes e adultos entre os 15 e 30 anos, proclama a extinção do analfabetismo. No entanto, na década de 1970 de acordo com Moll (1996) entre a população dos 7 aos 14 anos havia 7,7 milhões de analfabetos no Brasil e, de 15 anos ou mais, havia 15,5 milhões de analfabetos, cerca de 23,7% da população brasileira.
Um pouco mais tarde, segundo Moll (1996), encontramos, na década de 1980, cerca de 56% do fracasso escolar entre os alunos da 1ª série, período de sua inserção na escola. Parte desse fracasso foi em decorrência da modificação do perfil dos alunos que ingressaram nas escolas, seja pelo aumento no número de vagas, que trouxe a oportunidade às crianças de bairros periféricos de se inserirem nas escolas, seja devido ao êxodo rural. A escola no Brasil, desde que ocorreu essa mudança, lida com o desafio de trabalhar com esse público, bem diferente dos alunos “seletos” que frequentavam as escolas anteriormente.
Com a Constituição de 1988 considerada obsoleta, tivemos a década de 1990 marcada, de forma significativa, pela a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que teve como princípio o direito universal à educação, apresentando distintas mudanças para o ensino no Brasil.
Dentre os principais pontos, vemos o Estado assumindo a garantia do ensino fundamental obrigatório e gratuito, em instituições públicas, para os alunos que estivessem ou não em idade escolar. Defende-se, também, a democratização do ensino, a igualdade de inserção e permanência na escola, a garantia da qualidade do ensino, a valorização da experiência extra-escolar, a vinculação entre o trabalho e as práticas sociais.
Por fim, ela institui a Década da educação, promovida pela União em colaboração com os Estados do País, para que fosse encaminhado ao Congresso Nacional o Plano Nacional de Educação (PNE), que estabeleceria as metas e diretrizes para o ensino nos próximos dez anos (BRASIL, 1996).
Após um século de reivindicações, além da possibilidade legal de proporcionar a todo cidadão brasileiro uma vaga na escola, nosso grande desafio, no campo educacional, é promover a junção da expansão de vagas no ensino fundamental, com qualidade para os que dele usufruem.
A acessibilidade à escola no Brasil é de 97,9% no ensino fundamental, entre crianças e adolescentes. Mas, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), apenas 55% desses alunos conseguem concluir o ensino fundamental no tempo apropriado ao 9º ano, ou seja, aos 14 anos de idade. Segundo Lima (2009), a quantidade de vagas no ensino aumentou; no entanto, a qualidade desse mesmo ensino piorou.
Vemos, assim, como a situação que vivenciamos atualmente no cenário educacional brasileiro não é um fato atual e isolado: é um processo social, histórico e político. A alfabetização, essencialmente importante para o aluno apropriar-se de conhecimentos que serão apresentados no percurso de sua vida escolar, encontra-se, ainda, em processo de ajustamento.
2.7 O que é ser alfabetizado?
Nos últimos anos, a alfabetização tem passado por diversas mudanças, em todos os seus âmbitos. No aspecto conceitual, deparamo-nos com questões que se refletiram e se refletem nas decisões a serem tomadas a respeito de quais as capacidades básicas são necessárias para que um indivíduo, de fato, esteja alfabetizado.
É consensual, entre entidades não governamentais e entre o poder público, ainda que ambos tenham razões diferentes, a necessidade de as pessoas estarem inseridas socialmente como indivíduos alfabetizados.
Mas, afinal, o que é ser alfabetizado? É somente possuir as habilidades técnicas da leitura e da escrita?
O conceito de alfabetização passou por distintas transformações no decorrer dos tempos. De acordo com Britto (2007), no século XIX, eram consideradas alfabetizadas as pessoas que conseguiam escrever o próprio nome. Em 1940, aquele que era capaz de escrever e ler um bilhete simples era considerado, pela sociedade, como alfabetizado. Em 1958, a UNESCO estabelece uma nova referência: para ser alfabetizado, o indivíduo precisa ser capaz de ler e escrever, com compreensão, uma frase simples e curta sobre a vida cotidiana; analfabeta seria a pessoa que não conseguisse ler nem escrever uma frase simples sobre a vida cotidiana. Atualmente, o índice de analfabetismo no Brasil é medido pelo IBGE, por meio da autoanálise realizada pela população, que se declara alfabetizada ou não. De acordo com o Indicador de Alfabetismo Funcional, INAF, as pesquisas que são feitas pelo IBGE, de fato, assemelham-se muito com os testes realizados no Instituto.
O mesmo INAF refere-se a níveis a partir de uma forma afirmativa, ao falar do analfabetismo. De acordo com seus coordenadores, o interessante nesse processo é poder observar as habilidades e as práticas de leitura, escrita e matemática da população. O principal objetivo não é segregar as pessoas em grupos que sabem ou não escrever, mas sim, compreender a maneira e a frequência com que essas pessoas utilizam a escrita em seu dia a dia.
Dessa forma, o INAF (2014) organiza um sistema de disposição, em níveis de alfabetismo, que define como e quais as habilidades classificam o grau de alfabetismo de um indivíduo. De acordo com esse Instituto, os níveis de alfabetismo funcional são:
Analfabeto: corresponde à condição dos que não conseguem realizar tarefas simples que envolvem a leitura de palavras e frases, ainda que uma parcela destes consiga ler números familiares (números de telefone, preços etc.);
Alfabetismo rudimentar: corresponde à capacidade de localizar uma informação explícita em textos curtos e familiares (como um anúncio ou pequena carta), ler e escrever números usuais.
Alfabetismo básico: as pessoas classificadas neste nível podem ser consideradas funcionalmente alfabetizadas, pois já leem e compreendem textos de média extensão, localizam informações, mesmo que seja necessário realizar pequenas inferências.
Alfabetismo pleno: classificadas neste nível estão as pessoas cujas habilidades não mais impõem restrições para compreender e interpretar textos em situações usuais: leem textos mais longos, analisando e relacionando suas partes, comparam e avaliam informações, distinguem fato de opinião, realizam inferências e sínteses.
Atualmente, com a implementação da lei de Diretrizes e Bases, ampliou-se as discussões acerca dos conhecimentos que devem ser adquiridos pelos alunos na etapa da alfabetização. Desse modo, tornou-se necessário estabelecer conhecimentos e capacidades pertencentes aos direitos de aprendizagem pertencentes aos direitos que essa lei propõe. As ações pedagógicas que norteiam os diretos de aprendizagem no ensino de Língua Portuguesa são classificados em 4 eixos: Leitura, Produção de textos escritos, Oralidade e Análise Linguística. Abaixo, podemos observar o quadro geral dos Direitos de aprendizagem em Língua Portuguesa:
Quadro 1 - Direitos gerais de aprendizagem: língua portuguesa (BRASIL, 2012, p. 32)
Diversos trabalhos para além dos estudos linguísticos também se inserem na discussão sobre letramento. Além da linguagem, encontra-se também, no meio científico, discussões acerca do letramento matemático. De acordo com o INAF, o letramento matemático é o domínio de habilidades matemáticas que estão encadeadas no contexto em que os sujeitos estão inseridos. Dessa forma, os indivíduos respondem a questões relacionadas à capacidade de raciocínio envolvendo a resolução de problemas, entre outros, porém essas situações propostas devem ser sugeridas aos entrevistados principalmente estando relacionadas a sua vida cotidiana.
Assim como no tocante ao letramento linguístico, o INAF propõe classificações descritas para cada nível de Alfabetismo apresentado para o indivíduo. Desse modo, as habilidades matemáticas são avaliadas pelo Instituto caracterizadas pelos seguintes aspectos:
Analfabetismo: Corresponde à condição dos que não conseguem realizar tarefas elementares com números, como ler o preço de um produto ou anotar um número de telefone.
Alfabetismo nível rudimentar: Corresponde à capacidade de ler números em contextos específicos como preço, horário, números de telefone etc.
Alfabetismo nível básico: Corresponde à capacidade de ler números, resolver problemas simples envolvendo soma, subtração e multiplicação, ou mesmo a identificação de relações de proporcionalidade, ainda que recorrendo eventualmente à calculadora.
Alfabetismo nível pleno: Corresponde à capacidade de controlar uma estratégia na resolução de problemas mais complexos, que exigem a elaboração e a execução de uma série de operações relacionadas entre si, apresentando, ainda, familiaridades com mapas e gráficos e outras representações matemáticas de uso social frequente.
No quadro abaixo, podemos observar que, no grupo de 25 a 39 anos em que as pessoas já estão inseridas e estimuladas pelo mercado de trabalho, assim como em tarefas familiares cotidianas, o desempenho no nível do numeramento pleno é melhor:
1ª a 4ª série5ª a 8ª sérieEnsino Médio ou mais 15 a 2425 a 3940 a 6415 a 2425 a 3940 a 6415 a 2425 a 3940 a 64Analfabeto6%4%3%0%0%0%0%0%0%Rudimentar62%52%54%29%21%26%7%4%4%Básico28%38%38%60%59%53%53%40%34%Pleno4%6%5%11%20%21%41%56%61Quadro 2 - Numeramento – Inaf / Brasil (2002-2004) - por faixa etária.
Esse indicador que é o INAF se difere de outros programas de avaliação, pois, a avaliação que por ele é realizada não compreende somente a população ativa que frequenta a escola, mas também todos aqueles que não estão estudando, compondo a população de brasileiros na faixa dos 15 aos 64 anos. Esses resultados, portanto, retrata, em sua maioria, o nível de alfabetismo dos sujeitos inseridos ativamente na vida social.
Outro órgão como o PISA, também avalia a apropriação do letramento matemático. Seus relatórios descrevem que ele é letramento matemático corresponde “à capacidade dos alunos para analisar, julgar e comunicar ideias efetivamente propondo, formulando e resolvendo problemas matemáticos em diversas situações” (OECD/PISA, 2000, p. 41). Ambos enfatizam a importância dos sujeitos empregarem a matemática na vida prática aprendendo a ser cidadãos reflexivos.
Segundo Schliemann (1998) é por meio da escola que diferentes ações podem ser realizadas para que haja o interesse dos alunos, para que o ensino matemático seja de fato significativo. Segundo o autor (op.cit) algumas crianças
[...] demonstram raciocínio lógico quando as tarefas são apresentadas em contextos mais naturais e significativos. De forma semelhante, quando problemas de aritmética surgem no contexto de trabalho, as respostas de jovens vendedores são sempre corretas, ao passo que, em situações escolares, respostas erradas são frequentes. (SCHLIEMANN, 1998, p. 14).
Ainda sobre o ensino, Schliemann (1998, p. 15) acrescenta que “[...]fora da escola, as pessoas resolvem problemas mentalmente e encontram respostas corretas; na escola, utilizam procedimentos escritos e erram com muita frequência”.
A lei 9.394/69 de diretrizes e bases da educação prevê o ensino da Matemática enfatizando que é necessário garantir, no ensino, a possibilidade de aprender e se apropriar de conhecimentos que contemplem o domínio da leitura, escrita e do cálculo. No quadro abaixo, podemos observar a descrição sintética dos direitos de aprendizagem correspondentes aos anos iniciais da alfabetização:
Quadro 3- Direitos gerais de aprendizagem: Síntese. (BRASIL, 2012, p.33)
Assim como apresentado no quadro acima, vemos que os campos de conhecimento sobre o ensino de matemática se dividem. São quatro blocos, de acordo com o Pacto Nacional pela alfabetização na idade certa: números e operações; espaço e forma (geometria, pensamento geométrico); grandezas e medidas; e tratamento da informação (estatística). Esses conhecimentos, portanto, são complementares entre si, e não devem ser trabalhados dissociados no processo de ensino, mas sim de forma interdependente.
O conceito de alfabetização, desde a década dos anos 1990, associou-se ao termo letramento, ampliando essa concepção que vai para além das habilidades relacionadas à codificação e decodificação das palavras. Sobre essa relação, discorrerei na próxima sessão.
2.8 Da alfabetização para o letramento
Quando grande parte da população fica à margem do mundo letrado e os homens são impedidos de se constituírem enquanto sujeitos, há que se (re) considerar a exclusão social um processo nem sempre evidente pela sutileza de seus mecanismos constituídos dentro e fora da escola. (SILVA, 2012, p.3).
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), o Brasil em 2014 tinha cerca de 13 milhões de analfabetos acima de 15 anos, o que equivale a 8,3% da população.
Apesar desses dados, não podemos negar que os problemas que hoje temos são bem menores dos que existiam há tempos atrás. Silva & Ferreira (2007) reconhecem que tivemos grandes avanços na discussão teórica, no próprio conceito de alfabetização, o qual foi ampliado com o termo letramento, incluindo-se, também, a universalização da escola, com maiores possibilidades de acesso e na forma como se quer atualmente essa escola.
Vivemos em uma sociedade que valoriza e utiliza a cultura escrita em praticamente todos os meios, tornando-se cada vez mais necessário ter o conhecimento sobre o sistema alfabético. A respeito disso, Silva & Ferreira (2007, p. 10) acrescentam que, “[...] ser ou não ser alfabetizado nesta sociedade exclui, estigmatiza, expõe. Ter ou não noção de pertencimento a essa cultura letrada, de forma mais restrita ou generalizada, diferencia, classifica, diminui”. Isso pode ocorrer, seja de forma direta, por meio da exclusão de uma concorrência para a seleção de um emprego ou, por exemplo, de forma indireta, quando alguém é impossibilitado de realizar alguma atividade de leitura por falta de conhecimento linguístico específico.
Na década de 1980, com os estudos psicolinguísticos de Emília Ferreiro e Ana Teberosky, fomos apresentados a uma nova concepção de leitura e escrita que ampliou o conceito de alfabetização. A partir dos estudos da psicogênese da língua escrita, vimos que o aprendizado do sistema da língua escrita não se limita ao domínio das relações grafema-fonema. Ele também é caracterizado pelo processo construtivo em que a criança, ao estar em contato com a escrita, constrói e reconstrói continuamente hipóteses sobre este sistema.
Segundo Soares (2005), também houve o processo histórico de socialização da cultura escrita, no que tange à acumulação, difusão e distribuição de material escrito na sociedade. Ao mesmo tempo, houve também o surgimento da imprensa, o que trouxe ainda mais importância e status à escrita.
Além disso, as mudanças e exigências sociais da vida moderna foram trazendo outras necessidades e transformações para o conceito de alfabetização, pois a codificação e a decodificação das palavras já não eram tão eficazes para explicá-lo, porque o indivíduo alfabetizado passou a ser aquele que tem o domínio e utiliza o conhecimento da língua escrita em diversas situações sociais:
[...] só recentemente começamos a enfrentar uma realidade social em que não basta simplesmente “saber ler e escrever”: dos indivíduos já se requer não apenas que dominem a tecnologia do ler e escrever, mas também que saibam fazer uso dela, incorporando-a em seu viver, transformando-se assim seu “estado” ou “condição”, como consequência do domínio dessa tecnologia. (SOARES, 2005, p. 29).
A autora nos mostra que a escrita traz consequências sócio-históricas, linguísticas, econômicas, políticas e cognitivas para o indivíduo e para a sociedade na qual ele está inserido. O letramento torna-se, assim, “[...] o resultado ou a ação de ensinar ou aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita” (SOARES, 2006, p.18).
Dessa forma, surge a distinção entre os termos letramento e alfabetização, ou alfabetismo funcional. O termo alfabetização passa a ser utilizado na definição do aprendizado da lecto-escrita, isto é, no que diz respeito à apropriação do sistema de escrita.
A respeito de ambos, Soares (2003) reflete que cometemos um “erro” todas as vezes em que dissociamos alfabetização de letramento, pois eles acontecem concomitantemente no âmbito das concepções psicológicas, linguísticas e psicolinguísticas na aquisição do sistema de escrita, uma vez que alfabetização e letramento
[...] não são processos independentes, mas interdependentes, e indissociáveis: a alfabetização se desenvolve no contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só pode desenvolver-se no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema, isto é, em dependência da alfabetização. (SOARES, 2003, p. 14).
Acreditamos, sobretudo, que a necessidade do trabalho alfabetizador em ensinar o sistema notacional do sistema alfabético se dá na medida em que professor adota a perspectiva do letramento, indispensável em nossa sociedade para a autonomia dos indivíduos. Ainda segundo a autora (2006, p. 47) “[...] o ideal seria alfabetizar letrando, ou seja: ensinar a ler e escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se tornasse, ao mesmo tempo, alfabetizado e letrado”.
A escola é ainda o lugar mais adequado na promoção de condições para que o sujeito possa ter acesso a essas possibilidades, porque pode ter contato com determinados suportes textuais, desenvolvendo habilidades relacionadas aos gêneros escritos e orais que circulam na sociedade e que, muitas vezes, lhe são negadas. Sobre isso, adverte Rojo (2009, p. 10)
[...] um dos papéis mais importantes da escola – como agência cosmopolita [...] no mundo contemporâneo - é o de estabelecer a relação, a permeabilidade entre as culturas e letramentos locais/globais dos alunos e a cultura valorizada que nela circula ou pode vir a circular. Esse talvez seja, inclusive, um caminho para a superação do insucesso escolar e da inclusão social.
Kleiman (1995) também discute que os estudos sobre o letramento no Brasil vêm como resposta ao interesse teórico e às intenções de promover transformações práticas na realidade daqueles grupos marginalizados que não têm conhecimento do sistema de escrita alfabético. A autora mostra que o uso do termo letramento foi adotado, nos meios acadêmicos, como forma de separar o termo “impacto social da escrita” dos estudos sobre a alfabetização.
Os caminhos realizados pela alfabetização rumo ao letramento nos ajudam a entender alguns conceitos acerca do termo e de como ele é entendido hoje, principalmente, os impactos da sua interferência na prática pedagógica, no âmbito escolar.
A escola como principal agência de letramento tem-se preocupado com ele, não como prática social, mas como o processo concebido como prática individual, diferente das outras agências como a igreja, a rua, a família e outros meios sociais (KLEIMAN, 1995).
(As escolas, em sua grande maioria, enfocam a concepção de um modelo autônomo, que associa o letramento ao progresso, à civilização e à mobilidade social (KLEIMAN, 1995). O letramento autônomo seria, portanto, um conjunto de técnicas de leitura e escrita, capazes de tornar o aluno competente, independentemente do contexto. Ele não é preso ao contexto de sua produção para ser interpretado. O aluno, dentro dessa realidade, se
[...] sente como um estrangeiro na escola e as letras passam a representar o risco de perda da identidade. Ele aprendeu a escrever, mas não a se expressar; ele aprendeu a ler, mas não a compreender o seu mundo; ele foi alfabetizado, mas, na prática, ele se sente convidado a abrir mão de suas raízes. (SILVA, 2012, p. 3).
O letramento ideológico, por sua vez, leva em conta os contextos sociais. Empodera o sujeito, pois o coloca em cena como protagonista. Street (1985), apud Street (2006, p. 466) propõe que o letramento ideológico
[...] reconhece uma multiplicidade de letramentos, que o significado e os usos das práticas de letramento estão relacionados com contextos culturais específicos; e que essas práticas estão sempre associadas com relação de poder e ideologias: não são simplesmente tecnologias neutras.
Esse autor apresenta um novo conceito de letramento. Para ele, as práticas de letramento são características, não somente da cultura, mas também das estruturas de poder da sociedade. Sendo assim:
Os letramentos, para além das habilidades de ler e escrever, podem ser bem compreendidos como “um conjunto de práticas sociais, cujos modos específicos de funcionamento têm implicações importantes para as formas pelas quais os sujeitos envolvidos nessas práticas constroem relações de identidade e de poder.” (SILVA apud KLEIMAN, 1995, p. 11)
Ao apresentar esse ponto de vista, Silva A. (2011) nos aponta as possibilidades de construções de saberes letrados por meio de conhecimentos que se constituem das mais diversas formas, além daquelas que são canônicas, estabelecidas e privilegiadas em nosso meio social.
Nesse sentido, Street (2003, p. 77) propõe pensar o letramento em uma perspectiva plural, reconhecendo os múltiplos letramentos que vão se modificando através do tempo e do espaço, “[...] mas que também são contestados através das relações de poder.”
Traz para a discussão o conceito de práticas de letramento, ao invés de somente letramento, ampliando a multiplicidade desse significado. O autor (2006, p. 466) explica:
Existem vários modos diferentes pelos quais representamos nossos usos e significados de ler e escrever em diferentes contextos sociais, e o testemunho de sociedades e épocas diferentes demonstra que é enganoso pensar em uma única e compacta chamada letramento.
Ao considerar esses pressupostos, Rojo (apud HAMILTON, 2002) sinaliza dois vieses para essa perspectiva. Hamilton chama de letramentos dominantes, aqueles que são associados às instituições formais e que são valorizados legal e culturalmente, designando-os de letramentos “institucionalizados”. Aqueles letramentos locais, que não são controlados ou sistematizados por instituições, que são desvalorizados, oriundos do cotidiano da vida e da cultura, ela denomina de letramentos “vernaculares.” Apesar de distinguir esses termos, a autora os vê como categorias interdependentes. O desafio que se coloca atualmente é que parte dos letramentos advindos do cotidiano, da cultura popular, é desvalorizada por grande parte das instituições escolares.
Diante dessa realidade, ela conclui:
Cabe, portanto, também à escola potencializar o diálogo multicultural, trazendo para dentro de seus muros não somente a cultura valorizada, dominante, canônica, mas também as culturas locais e populares e a cultura de massa, para torná-la vozes de um diálogo, objetos de estudo e de crítica. Para tal, é preciso que a escola se interesse por e admita as culturas locais de alunos e de alunos e professores”. (ROJO, 2009, p. 115)
O que temos observado é que os saberes advindos dos meios populares, trazidos pelos alunos, pouco encontram espaço para serem demonstrados, desenvolvidos e refletidos no ambiente educacional em que poderiam servir como base para se construírem elos com os novos conhecimentos que vão sendo constituídos como outros aprendizados através da escola.
No próximo item apontarei como as práticas de letramento abarcam os eventos de oralidade formal, possibilitando diversas formas de atuação nos meios sociais.
2.9 O ensino do oral: por que ensinar oralidade?
Olhando para a perspectiva educacional, vemos a concepção de uma língua como produto sócio-histórico. Do ponto de vista escolar, Geraldi (1997) apresenta a concepção de linguagem como interação. Segundo o autor, que discute as ideias de Bakhtin,
[...] mais do que possibilitar uma transmissão de informações de um emissor a um receptor, a linguagem é vista como um lugar de interação humana. Por meio dela, o sujeito que fala, pratica ações que não conseguiria levar a cabo, a não ser falando; com ela o falante age sobre o ouvinte, constituindo compromissos e vínculos que não preexistem à fala. (GERALDI, 1997, p. 41).
Pensar o ensino de língua portuguesa dessa forma ajuda a capacitar o aluno a utilizar a sua linguagem nos mais diversos meios da sociedade. É nessa medida que o trabalho desenvolvido com a oralidade se torna importante, pois, legitima essa atividade no seu âmbito prático e social.
Vemos, por outro lado, que a sociedade moderna é uma sociedade de escrita, pois, na escrita vivemos mergulhados e dela dependemos em grande parte. Existe a crença de que por meio da escrita é que há possibilidades de se ascender socialmente, além de que muitos pensam que a fala não precisa ser ensinada/trabalhada na escola. De acordo com Marcuschi (1997, p. 21), “[...] seríamos ingênuos se atribuíssemos essa atitude ao argumento de que a fala é tão praticada no dia-a-dia a ponto de já ser bem dominada e não precisa de ser transformada em objeto de estudo em sala de aula.” Ao entrarem para a escola, as crianças conhecem a linguagem, pois a utilizam em seu meio social, mas ainda não se apropriaram de todos os recursos e possibilidades de uso nos diferentes contextos. Por isso, afirma Bortoni-Ricardo (2005, p.131):
A tarefa da escola está justamente em facilitar a incorporação ao repertório linguístico dos alunos de recursos comunicativos que lhes permitam empregar com segurança os estilos monitorados da língua, que exigem mais atenção e maior grau de planejamento.
Deve-se trabalhar a oralidade com os alunos na escola desde bem pequenos, pois ela amplia as suas competências de linguagem. Refletir sobre a língua a partir da oralidade é um ótimo elemento para se iniciar o ensino de língua materna, pois esse é um fenômeno mais próximo da realidade dos alunos.
Sendo trabalhada a oralidade, é também possível tocar na questão que tantas vezes é evitada de ser refletida em sala de aula: a variação linguística. Dessa forma, é possível ao aluno perceber a mutabilidade da língua, sua heterogeneidade e suas transformações. A oralidade também contribui na formação cultural e na preservação de tradições que não são escritas, mesmo onde as culturas escritas já são predominantes (MARCUSCHI, 1997).
Nisso, também vemos a supremacia da escrita em detrimento da fala. O texto oral traz marcas negativas para determinados modos de falar, proporcionando a estigmatização do falante.
Historicamente, fala e escrita foram marcadas e descritas entre si por algumas dicotomias ideológicas e formais, como podemos observar no quadro abaixo:
DICOTOMIAS PERIGOSASFALA ESCRITAcontextualizadaDescontextualizadaimplícitaExplícitaconcretaAbstrataredundanteCondensadanão-planejadaPlanejadaimprecisaPrecisafragmentáriaIntegrada
Quadro 4 – Dicotomias perigosas. (MARCUSCHI, 2007, p. 28)
No entanto, essas divisões equivocadas entre ambas contradizem o próprio fenômeno linguístico. Oralidade e escrita são modalidades diferentes, portanto, as duas acontecem de forma contextual e podem sim ser planejadas, porém respeitando as especificidades de cada uma.
Desse modo, reitero a necessidade de a escola olhar para os fenômenos orais e se preocupar com essa modalidade linguística de forma sistematizada e séria, para que os alunos possam, cada vez mais, ter recursos de se apropriarem da sua própria fala.
2.10 O que dizem os documentos oficiais?
Vemos, nos últimos anos, um movimento de implementação de documentos oficiais que busquem auxiliar a escola no modo de como pensar práticas pedagógicas, na forma de se levar os alunos a desenvolver competências de linguagem oral, prática pedagógica, que ficou, durante muito tempo, à parte, em relação à modalidade escrita.
A partir das orientações dos PCN’S (Parâmetros Currículares Nacionais), espera-se que a oralidade seja trabalhada e valorizada de forma correta, com uma abordagem que diminua o preconceito linguístico e promova a ampliação do uso oral da linguagem pelos alunos. Lê-se, nesse documento:
Cabe à escola ensinar o aluno a utilizar a linguagem oral no planejamento e realização de apresentações públicas... Trata-se de propor situações didáticas nas quais essas atividades façam sentido de fato, pois é descabido treinar um nível mais formal da fala, tomando-o como mais apropriado para todas as situações. (BRASIL, 1998, p. 25)
Os PCN'S propõem a elaboração, produção e escuta de textos orais proporcionando aos alunos a capacidade de planejamento, monitoração, identificação, compreensão do desempenho dessa modalidade de linguagem. Além disso, enfatizam a importância da valorização do repertório linguístico da própria comunidade.
Assim como os PCN’S, a Proposta Curricular da Prefeitura de Juiz de Fora discute essa questão, trazendo a oralidade como proposta de objeto de ensino. Dentre os eixos propostos, o de número 5 é dedicado ao trabalho com a oralidade, como apresentado na tabela abaixo:
EIXO 5
PRODUÇÃO ORAL E GÊNEROS TEXTUAIS
Conhecimentos e atitudes1) Participar das interações cotidianas em sala de aula:
i. Escutando com atenção e compreensão;
ii. Respondendo às questões propostas pelo (a) professor (a);
iii. Expondo opiniões nos debates com colegas e com o (a) professor (a).2) Usar a língua falada em diferentes situações escolares ou não, buscando empregar a variedade linguística adequada.3) Planejar a fala em situações formais.4) Realizar com pertinência tarefas cujo desenvolvimento dependa de escuta atenta e compreensão.Quadro 5 - Eixo 5 :PRODUÇÃO ORAL E GÊNEROS TEXTUAIS - Conhecimentos e atitudes. PREFEITURA DE JUIZ DE FORA, p. 46, 2012.
Nesse eixo, a produção oral exige que as práticas pedagógicas perpassem pela promoção de atividades que levem os alunos a participarem de interações dentro da sala de aula, em um processo de interlocução com os colegas e o professor. No segundo e terceiro aspecto, as propostas buscam levar os alunos a refletirem sobre a língua, as variações que são próprias da sua constituição, e a monitorarem a sua fala em situações formais. Por fim, busca-se que o aluno possa resolver tarefas através da escuta atenta de textos.
Também o documento Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) discute, em suas diretrizes, a importância de se trabalhar a oralidade desde os primeiros anos do processo de alfabetização. A proposta das capacidades linguísticas é que elas sejam introduzidas, aprofundadas e consolidadas até o terceiro ano do ensino fundamental:
Quadro 6 – Oralidade. BRASIL, 2012, p.35.
Na próxima seção, farei uma breve incursão sobre os gêneros textuais orais e o seu papel no seu ensino na escola.
2.11 Os gêneros textuais orais
Assim como outros autores já prescreveram, Dolz & Schneuwly (2004) também salientam que há algumas dificuldades em se trabalhar com a oralidade em sala de aula de forma sistematizada, por ela ser vista como algo espontâneo, já aprendida pelos alunos. É um desafio educacional ensinar a linguagem oral dentro das potencialidades e multiplicidades que ela apresenta. Nesse sentido, entende-se a necessidade de:
[...] construir um objeto de ensino-aprendizagem claramente delimitado e definido, que confira ao oral legitimidade e pertinência em relação aos saberes de referência, às expectativas sociais e às potencialidades dos alunos. Essa construção é indispensável para fundar um ensino formal do oral na escola, numa ótica a um só tempo pedagógica e didática (DOLZ & SCHNEUWLY, 2004, p. 151).
A língua, devido a seu caráter dinâmico, se materializa nos enunciados (BAKTHIN, 2006) e os enunciados se materializam em gêneros. Os gêneros, todavia, vão se construindo em situações concretas de interação em determinadas esferas da vida.
Marcuschi (2008) esclarece que os gêneros são fenômenos sociointerativos; sendo assim, eles são constituídos na interação comunicativa. Por isso, eles não surgem naturalmente, mas a partir de um contexto. Desse modo, os falantes se amparariam em conhecimentos já apropriados cotidianamente sobre os gêneros textuais orais. O autor (op.cit. p. 187) aponta: “Tudo indica que existe um saber social comum pelo qual os falantes se orientam em suas decisões acerca do gênero do texto que estão produzindo ou que devem produzir em cada contexto comunicativo.”
Desse modo, em muitas situações comunicativas, percebemos que os falantes especificam o gênero no momento da sua fala, como podemos ver no quadro abaixo:
No telefonema de ontem...Na aula de hoje...Nessa discussão...Minha conferência foi...O debate de ontem...O bate-boca daquela noite...A piada do dia seguinte...A reportagem de ontem...Aquela transmissão de futebol...O noticiário dessa noite...etc.(MARCUSCHI, 2008, p. 187)
Os gêneros textuais apresentam a forma canônica linguística que são identificadas facilmente pelos interlocutores, como podemos observar no quadro abaixo:
Era uma vez... (abertura de narrativa)“prezado amigo” (abertura de uma carta)“conhece aquela do português que...” (piada)“eu o condeno a cinco anos” (julgamento em tribunal)“tome dois quilos de açúcar e adicione...” (receita de bolo)“alô, quem é?” (telefonema)“o tema de hoje será a revolução francesa” (conferência)“atenção, silêncio” (aviso)
(MARCUSCHI, 2008, p. 187)
Essas formas são socialmente conhecidas e construídas historicamente nas modalidades da fala e da escrita, e cada uma apresenta características próprias que tem por objetivo preparar o interlocutor para a comunicação.
Diante da grande diversidade de gêneros orais de que dispomos, Bortoni-Ricardo (2014) demonstra um inventário de gêneros que Pereira & Freitas classificaram para o trabalho com os gêneros orais em sala de aula, como podemos observar no quadro abaixo:
NarrarContos de fadasLendasContoAdivinhaPiadaFábulasLivros de histórias infantis
RelatarRelato de viagemNotícia/reportagemBiografiaRelato de experiências vividasTestemunhos
ArgumentarDiálogo argumentativoDebate regradoReclamaçãoTexto de opiniãoExposição de idéias sobre jogos de futebol, competições e esportes em geral
ExporExposição oralComunicação oralSarausDeclamaçãoDramatizaçãoSimulação de noticiários de rádio e TVOutro (qual?)
JogosPedir e fornecer informaçõesDar recadosSolicitar algoExplicar o funcionamento de um objeto ou regras de um jogo
OutrosParlendasTrava-línguasReceitas e remédiosEntrevistaConversa telefônicaConversas espontâneasDiscurso festivoQuadro 7 - Gêneros orais trabalhados em sala de aula. PEREIRA apud BORTONI-RICARDO, 2014, p. 100.
Cabe também observar que Dolz & Schneuwly (2004) discutem a importância de a escola ensinar os gêneros formais e suas funções. Esse movimento dialógico, segundo esses autores, pode ser considerado adequado a determinada situação pelo falante, à medida que a linguagem é desenvolvida. Dessa forma, acrescentam os autores:
O papel da escola é levar os alunos a ultrapassar as formas de produção oral cotidianas para as confrontar com outras formas mais institucionais, mediadas, parcialmente reguladas por restrições exteriores.
Os gêneros formais públicos constituem as formas de linguagem que apresentam restrições impostas do exterior e implicam, paradoxalmente, um controle mais consciente e voluntário do próprio comportamento para dominá-las. São, em grande parte, pré-definidos, “pré-codificados”, por convenções que os regulam e que definem seu sentido institucional. (DOLZ & SCHNEUWLY, 2004, p. 175).
As proposições aqui explicitadas situam-se como um esboço inicial para pensarmos à discussão sobre a necessidade de se trabalhar com os alunos a língua falada, por meio dos gêneros orais, através das práticas presentes no seu cotidiano e inserindo novos conhecimentos para a sua vivência. É preciso, então, que se planeje e selecione textos orais “adequados ao gênero, de recursos discursivos, semânticos e gramaticais, prosódicos e gestuais”, como citados nos PCN’S (BRASIL, 1998).
2.12 O teatro e a oralidade
Todo mundo atua, age, interpreta. Somos todos atores. Até mesmo os atores! Teatro é algo que existe dentro de cada ser humano, e pode ser praticado na solidão de um elevador, em frente a um espelho, no Maracanã ou em praça pública para milhares de espectadores. Em qualquer lugar… até mesmo dentro dos teatros. (BOAL, 2005)
Dentre as indicações de trabalho apresentadas pelos gêneros orais explicitados pelos PCN’S, encontramos algumas relacionadas aos textos teatrais. Com eles, é possível os alunos desenvolverem competências de expressão, fala e escuta dos textos que podem ser explorados com esse tipo de trabalho. Desse modo, pode-se atender à orientação dos PCN`s, quando advertem que “[...] cabe à escola ensinar o aluno a utilizar a linguagem oral no planejamento e realização de apresentações públicas: realização de entrevistas, debates, seminários, apresentações teatrais etc.” (BRASIL, 1998, p. 25). Ainda é possível, por meio dessa tarefa, realizar “[...] representação de textos teatrais ou de adaptações de outros gêneros, permitindo explorar, entre outros aspectos, o plano expressivo da própria entoação: tom de voz, ritmo, aceleração, timbre;...” (BRASIL, 1998, p. 75). Na tabela abaixo, também podemos ver as sugestões dos textos dramáticos como possibilidades de trabalhos com os gêneros orais, apresentados pelos PCNs:
GÊNEROS SUGERIDOS PARA A PRÁTICA DE PRODUÇÃO DE TEXTOS ORAIS E ESCRITOSLINGUAGEM ORALLITERÁRIOS
DE IMPRENSA
DE DIVULGAÇÃO
CIENTÍFICACanção
textos dramáticos
notícia
entrevista
debate
depoimento
exposição
seminário
debate
Quadro 8 - Gêneros sugeridos para a prática de produção de textos orais e escritos. BRASIL, 2008, p. 57.
Como se vê, o quadro foi construído a partir da realidade segundo a qual a comunicação oral se dá por meios que não são somente linguísticos, mas também através de mímicas, de movimentos faciais, gestos corporais, na interação dialógica com o interlocutor, os quais podem confirmar, validar ou substituir as codificações linguísticas. (DOLZ & SCHNEUWLY, 2004).
A partir disso, podemos observar, no quadro a seguir que nos apresentam esses autores, como os elementos verbais e não verbais se articulam no processo de comunicação. Sendo assim, ele não se realiza através somente da sua forma linguística, mas também dos elementos prosódicos, paralinguísticos e extralinguístisticos.
MEIOS NÃO LINGUÍSTICOS DA COMUNICAÇÃO ORAL
MEIOS PARA-LINGUÍSTICOS
MEIOS CINESTÉSICOS
POSIÇÃO DOS LOCUTORES
ASPECTO EXTERIOR
DISPOSIÇÃO DOS LUGARESQualidade da voz melódica
elocução e pausas
respiração
risos
suspiros
Atitudes corporais
movimentos
gestos
troca de olhares
mímicas faciaisOcupação de lugares
espaço pessoal
distâncias
contato físicoRoupas
disfarces
penteado
óculos
limpezaLugares
disposição
iluminação
disposição das cadeiras
ordem ventilação
decoraçãoQuadro 9: DOLZ & SCHNEUWLY, 2004, p. 160.
Os recursos da linguagem oral e não oral, portanto, devem estar em constante sintonia e serem bem utilizados pelo falante. A falta de interação entre eles pode revelar indícios de contradição, que a linguagem verbal não revela no ato da fala.
Nesse sentido, o teatro, com sua manifestação artística, utiliza-se de todos esses meios demonstrados no quadro acima: linguísticos, cinestésicos, posição dos locutores, aspectos exteriores e disposição dos lugares em sua constituição enquanto gênero. Dessa forma, permite também que a linguagem se configure no sujeito como forma de constituição da sua própria identidade linguística, através das possibilidades que pode oferecer ao indivíduo de exercitar, de forma sistematizada e reflexiva, os signos não linguísticos e os linguísticos próprios da sua estrutura enquanto gênero.
2.13 As habilidades sociais e a oralidade
Toda a atividade discursiva e todas as práticas linguísticas se dão em textos orais ou escritos com a presença de semiologias de outras áreas, como a gestualidade e o olhar, na fala, ou elementos pictóricos e gráficos, na escrita. Assim, as produções discursivas são eventos complexos constituídos de várias ordens simbólicas que podem ir além do recurso estritamente linguístico.
(MARCUSCHI, 2007, p. 13)
De acordo com Aléong (2002), juntamente com a língua, a sociedade espera dos seus falantes, atitudes sociais que estão embutidas em uma norma linguística. O autor (2002, p. 147) explica:
Enquanto veículo simbólico, a língua faz parte de um conjunto de meios de interação simbólica que compreendem sobretudo o não-verbal, inclusive os gestos, a vestimenta, a estética corporal, o savoir-vivre em sociedade, e até mesmo as maneiras à mesa.[...] é importante não dissociar a língua desses outros elementos que constituem as bases da interação simbólica na vida social.
A incursão na temática sobre a linguagem delineia o contexto também do extralinguístico e revela-se, dessa forma, um movimento em torno do habitus, um dos conceitos utilizados por Bourdieu. A partir do entendimento desse autor, as características dos grupos sociais ficam expressas nas ações dos indivíduos, por meio dos usos mentais e corporais, pois, “[...] através do habitus, o social fica impresso no individual, não apenas nos usos mentais, mas, sobretudo, nos usos corporais (...)” (HANKS, 2008, p. 36).
A inserção do sujeito no mundo social, segundo esse autor, “[...] concretiza-se nas formas de movimento, de gesticulação, de olhar, de orientação no espaço de vida”. Ele acrescenta:
Em termos linguísticos, o habitus está relacionado à definição social do falante, mental e fisicamente, a seus modos rotineiros de falar, à sua gestualidade e ações comunicativas corporificadas, [...] e às perspectivas inculcadas pelas práticas referenciais cotidianas de uma dada língua [...]. (HANKS, 2008, p. 36)
Junto ao conceito de habitus, se desenvolvem três linhas de reflexão. A primeira combina intenção com avaliação. A segunda diz respeito ao entendimento que os sujeitos têm sobre o seu corpo: “Em termos linguísticos, a questão é como os falantes compreendem o seu próprio engajamento nas práticas comunicativas, sejam elas verbais ou gestuais (HANKS, 2008, p. 42).” E a terceira, com base na abordagem do historiador Erwin Panofsky (apud HANKS 2008, p. 42), o habitus seria mais próximo do mentalismo do que da filosofia. Hanks (2008, p. 42) esclarece:
De um ponto de vista linguístico, o habitus corresponde à formação social dos falantes, o que inclui a disposição para determinados tipos de uso linguístico, para avaliá-los segundo valores socialmente internalizados e para incorporar a expressão ao gesto, à postura e à produção da fala.
Nesse sentido, a relação entre a linguagem e as habilidades sociais – viés teórico em que se baseiam as atividades desenvolvidas no Curumim - se faz relevante. A partir do entendimento de Del Prette (2008), as crianças precisam desenvolver um repertório mais amplo e elaborado de habilidades sociais para saberem lidar de forma apta com as demandas e os desafios atuais que surgem socialmente. Esse termo, portanto, “[...] aplica-se às diferentes classes de comportamentos sociais do repertório de um indivíduo, que contribuem para a competência social, favorecendo um relacionamento saudável e produtivo com as demais pessoas” (DEL PRETTE, 2008, p. 31).
Estudos nas últimas décadas constataram a importância das classes de habilidades sociais para o processo adaptativo das crianças. Elas são um sistema composto por sete classes entendidas como prioritárias no desenvolvimento interpessoal da criança (DEL PRETTE, 2008) divididas e denominadas da seguinte forma: autocontrole e expressividade emocional; civilidade; empatia; assertividade; fazer amizades; solução de problemas interpessoais e habilidades sociais acadêmicas. Essas habilidades se desdobram em subclasses que são realizadas, em sua maioria, por meio das práticas orais, como demonstrado na tabela que se segue:
Classes e subclasses de habilidades propostas como relevantes na infânciaClassesPrincipais subclassesAutocontrole e expressividade emocionalReconhecer e nomear emoções próprias e dos outros, controlar a ansiedade, falar sobre emoções e sentimentos, acalmar-se, lidar com os próprios sentimentos, controlar o humor, tolerar frustrações, mostrar espírito esportivo, expressar as emoções positivas e negativas.CivilidadeCumprimentar pessoas, despedir-se, usar locuções como: por favor, obrigado, desculpe, com licença; aguardar a vez para falar, fazer e aceitar elogios, seguir regras ou instruções, fazer perguntas, responder perguntas, chamar o outro pelo nome.EmpatiaObservar, prestar atenção, ouvir e demonstrar interesse pelo outro, reconhecer/inferir sentimentos do interlocutor, compreender a situação (assumir a perspectiva), demonstrar respeito às diferenças, expressar compreensão pelo sentimento ou experiência do outro, oferecer ajuda, compartilhar.AssertividadeExpressar sentimentos negativos (raiva e desagrado), falar sobre as próprias qualidades ou defeitos, concordar ou discordar de opiniões, fazer e recusar pedidos, lidar com críticas e gozações, pedir mudança de comportamento, negociar interesses conflitantes, defender os próprios direitos, resistir a pressão de colegas.Fazer amizadesFazer perguntas pessoais; responder perguntas, oferecendo informações livres (auto-revelação); aproveitar as informações livres oferecidas pelo interlocutor; sugerir atividade; cumprimentar, apresentar-se; elogiar, aceitar elogios; oferecer ajuda, cooperar; iniciar e manter conversação (“enturmar-se”); identificar e usar jargões apropriados.Solução de problemas interpessoaisAcalmar-se diante de uma situação-problema; pensar antes de tomar decisões, reconhecer e nomear diferentes tipos de problemas; identificar e avaliar possíveis alternativas de solução; escolher, implementar e avaliar uma alternativa; avaliar o processo de tomada de decisão.Habilidades sociais acadêmicasSeguir regras ou instruções orais, observar, prestar atenção, ignorar interrupções dos colegas, imitar comportamentos socialmente competentes, aguardar a vez para falar, fazer e responder perguntas, oferecer, solicitar e agradecer ajuda, buscar aprovação por desempenho realizado, elogiar e agradecer elogios, reconhecer a qualidade do desempenho do outro, atender pedidos, cooperar e participar de discussões.Quadro 10 - Classes e subclasses de habilidades sociais propostas como relevantes na infância. DEL PRETTE e DEL PRETTE, 2008, p. 46-47.
Dessa forma, o bom desenvolvimento das habilidades sociais contribui para um desempenho social competente. Esses desempenhos esperados e valorizados socialmente precisam ser aprendidos e conhecidos pelas crianças, e a linguagem está necessariamente associada a essas habilidades. As crianças precisam reconhecer os contextos em que estão inseridas, os papéis que precisam assumir socialmente e que vão se diferenciando de acordo com o tempo (DEL PRETTE, 2008). Nesse processo, a integração da comunicação verbal e não verbal constitui um dos elementos fundamentais para o desempenho social. Sendo assim, esse autor afirma (2008, p. 37):
A criança aprende então, desce cedo, que a escolha e o uso correto de determinadas palavras, em vez de outras, tem um efeito decisivo na interpretação que os demais fazem sobre o que quer comunicar. Por outro lado, aprende a inferir intenções e emoções com base no conteúdo verbal e não-verbal das mensagens que recebe.
A linguagem é, portanto, fundamental no processo do trabalho com as habilidades sociais. Como afirma Macedo (2000), é através da própria língua que os alunos podem reconstruir a sua história e cultura, além de poderem desenvolver a sua própria voz e um sentimento positivo do próprio valor.
Do mesmo modo, o trabalho realizado com o teatro, que engloba os aspectos verbais e não-verbais, traz aspectos teórico-práticos capazes de auxiliar o processo de construção da competência comunicativa por parte dos alunos, pois oferece características que contemplam aspectos constitutivos da própria linguagem.
3 PARA CHEGAR À VILA: A CONSTRUÇÃO DE UM CAMINHO
Não me inquieta se o caminho
que me coube - por secreto
desígnio - jamais floresce.
Dentro de mim, sei que existe,
oculta, uma rosa branca.
Incólume rosa e branca.
(Thiago de Mello)
O estudo que aqui apresento, tendo em vista os objetivos determinados, vinculou-se ao viés qualitativo. A partir do entendimento de Creswell (2007), por meio da pesquisa qualitativa, o pesquisador consegue compreender, de forma gradual, o sentido de um fenômeno social ao constatar, comparar, reproduzir, catalogar e classificar o objeto de estudo.
Considerando o caráter da investigação, que busca entender a produção oral dentro das atividades das oficinas educativas de teatro, adotei a pesquisa-colaborativa que consiste em um trabalho de interação e negociação de sentidos entre professor-pesquisador em um processo de formação continuada:
Nesse sentido, mais do que descrever a cultura escolar, cabe ao pesquisador colaborativo inserir-se no processo de construção dessa cultura, aproximando-se de pessoas, situações, locais e eventos típicos do local de pesquisa, de maneira a entender que os significados que caracterizam o mundo social são constituídos pelo homem, em um processo de interpretação e reinterpretação de sua experiência (HORIKAWA, 2008, p. 23).
Também utilizei a abordagem da Etnografia da Comunicação proposta por Del Hymes, advinda da tradição da Antropologia Cultural revisitada por Bortoni-Ricardo (2014). Para Hymes, a compreensão sobre a humanidade se daria à medida que se considerasse sua diversidade e desenvolvimento etnográfico. Desse modo, os pesquisadores etnográficos eram aqueles que emergiam na vida e cultura de uma determinada comunidade por um longo período de tempo.
Os trabalhos de Del Hymes foram desenvolvidos nas áreas da Linguística, Sociolinguística, Antropologia e Folclore. No campo da Sociolinguística proposto por Hymes, Figueroa em texto de 1994 citado por Bortoni-Ricardo (2014), destaca sete temas que nos faz compreender o conceito de competência comunicativa trabalhado por esse autor:
1.A teoria linguística é vista como teoria da língua, o que implica a organização da fala, e não somente da gramática.2.As fundações da teoria e da metodologia implicam questões de função, e não somente de estrutura.3.As comunidades de fala se constituem pela organização dos modos de falar (e não são equivalentes à distribuição [espacial] da gramática de uma língua).4.A competência é considerada uma habilidade pessoal (não apenas conhecimento gramatical, potencial sistemático de uma gramática, propriedade superorgânica de uma sociedade, ou, principalmente, algo irrelevante para as pessoas de qualquer forma).5.A performance é uma conquista e responsabilidade, algo que se possui e emerge, (não somente como processamento psicolinguístico e impedimento).6.As línguas são o que os usuários fazem delas (não apenas um apanágio da natureza humana).7.A liberdade, igualdade e fraternidade da fala são conquistadas na vida social (não simplesmente postuladas como tácitas, em consequência da língua).
Quadro 11– Conceito de competência comunicativa. (FIGUEROA apud BORTONI-RICARDO, 2014, p. 87)
Para o ensino de línguas, esse conceito de competência comunicativa tornou-se muito produtivo. Ela surge dos estudos do antropólogo Ward Goodenough (1964), que discutia que a cultura de uma pessoa se constitui por meio daquilo que ela conhece e crê, de modo que os outros membros da sociedade a que ela pertence a aceitem nos papéis sociais nos quais ela se propõe desempenhar (BORTONI-RICARDO, 2005):
Do ponto de vista sociolinguístico educacional, para operar de uma maneira aceitável, um membro de uma comunidade de fala tem de aprender o que dizer e como dizê-lo apropriadamente, a qualquer interlocutor e em quaisquer circunstâncias. Essa capacidade pessoal, que inclui tanto o conhecimento tácito de um código comum, como a capacidade de usá-lo, foi denominada competência comunicativa por Hymes (1972). (BORTONI-RICARDO, 2014, p. 61-62)
Desse modo, sendo a produção linguística parte da cultura, a competência comunicativa é a ferramenta que capacita o falante a se apropriar de certos recursos de linguagem, com qualquer interlocutor, em diversos grupos sociais, estando ele desempenhando qualquer papel social.
Com o auxílio mnemônico do termo speaking, Del Hymes criou o método da pesquisa da Etnografia da Comunicação, no qual cada letra do termo corresponde a cada um dos elementos da pesquisa:
Componentes da pesquisa na Etnografia da Comunicação
S – Setting or scene: ambienteP – Participants: participantesE – Ends: fins ou propósitosA – Act sequence: forma ou conteúdo da mensagemK – Key: tom ou modo de pronunciarI – Instrumentalities: instrumentos de transmissãoN – Norms: normas de interação e interpretaçãoG – Genres: gêneros textuais, orais ou escritosQuadro 12 - Componentes da pesquisa na Etnografia da Comunicação. (DELL HYMES, apud BORTONI-RICARDO 2015, p. 90)
O trabalho analítico dos dados desta presente pesquisa deu-se por meio desse viés: corpus foi submetido a essas categorias dos componentes da pesquisa hymesiana. O primeiro elemento desse método é representado pela letra “S” que se refere à setting or scene, ambiente, segundo o qual todo ato de fala situa-se, quer no espaço, quer no tempo.
Posteriormente, encontram-se os participants, participantes que interagem na pesquisa por meio dos papéis sociais que eles desempenham. O próximo componente, Ends/fins, são os propósitos que permeiam uma interação. Já o Act sequence refere-se à forma ou o conteúdo da mensagem, aquilo que é dito e a forma como a mensagem é dita. Key é o tom ou o modo de pronunciar a mensagem. Ele permite ao interlocutor inferir e reconhecer o modo como a conversa se manifesta. Instrumentalities são os instrumentos de transmissão, “[...] se é na interação face a face, por telefone, carta, telegrama, etc.; se é cantada, enfim, se é verbal ou não verbal, ou se são usados sinais, como os de fumaça ou tiros de canhão ou foguetes.” (BORTONI-RICARDO, 2014, p. 96). Norms, normas de interação e interpretação, são as normas que dizem respeito às regras que permeiam as relações interacionais. Por fim, Genres, são os gêneros textuais, sejam eles orais ou escritos.
Apresentarei, posteriormente, as análises das peças e dos jogos teatrais baseados nesses pressupostos metodológicos. Cada eixo de análise constituiu-se a partir das reflexões vinculadas por meio da linguagem trabalhada e desenvolvida pelas crianças espontaneamente durante as oficinas de teatro e dos componentes oferecidos pela pesquisa Etnográfica da Comunicação.
3.1 - Por onde andei...
A minha inserção no campo para a realização desta pesquisa iniciou-se em março de 2013, quando meu tema ainda não estava delineado. Sabia que queria realizar uma pesquisa que tivesse um caminho que perpassasse aquela comunidade, porém não sabia como isso iria ela se concretizar. Como não havia escola de Educação Básica do 1º ao 9º ano do ensino fundamental no bairro, lembrei-me do Curumim, que era um espaço socioeducativo que acolhia as crianças em seu contraturno escolar. Havia tido experiência nessas instituições enquanto aluna, quando era criança, não com o nome Curumim, mas como um projeto que o antecedeu: o Pró-criança. Nele, algumas atividades semelhantes também eram desenvolvidas em um trabalho conjunto com diversos educadores para crianças que eram moradores de um bairro próximo.
Acredito que a identificação ocorrida com o bairro e com a instituição tenha permitido uma afinidade com as pessoas que ali trabalhavam, circulavam e com as crianças, o que possibilitou uma facilidade em relação ao acesso e realização da pesquisa desde o início do curso de mestrado.
Porém, a definição do meu tema somente ocorreu no final do segundo semestre de 2013. A minha primeira escolha foi a de estar em uma oficina de leitura e escrita (o que, para mim, era mais óbvio por querer realizar uma pesquisa na área da linguagem), com crianças de 5 e 6 anos de idade que ainda não estavam alfabetizadas. No princípio do trabalho, eu mesma desenvolveria atividades relacionadas aos gêneros orais com a turma, em conjunto com a educadora responsável pela sala.
Após algum tempo de acompanhamento e observação, a educadora regente se ausentou das oficinas por problemas de saúde e outra entrou em seu lugar. Porém, as crianças ficaram mais agitadas com a presença da educadora novata e, além disso, outras duas crianças entraram para a turma, o que fez com que a turma apresentasse diferença de comportamento. A direção aguardava o retorno da educadora afastada por motivos médicos, o que não aconteceu dentro da data prevista. Além disso, a turma estava para ser dividida, o que me deixava com receio disso comprometer a minha pesquisa.
No segundo semestre de 2013, acompanhei as crianças do Curumim Vila Olavo Costa em uma apresentação em outro Curumim de um bairro de Juiz de Fora. Cada educador responsável por sua turma fez uma apresentação da sua oficina. A apresentação realizada pela oficina de teatro foi um musical chamado Cirandas, em que o cenário era móvel, composto por caixas de madeiras encapadas por tecidos coloridos, jutas e que as próprias crianças articulavam em cena. Nesse momento, pensei na possibilidade da mudança de oficina. O trabalho inicial o qual havia me proposto realizar não estava se desenvolvendo da forma como havia planejado e a oficina de teatro era um trabalho estritamente oral em que as produções ocorriam com muita frequência, eficácia e sistematização. A solução e a produção do saber estavam acontecendo diante dos meus olhos, e eu não havia enxergado. Era o que eu precisava. A partir dessa constatação, conversei ,na semana seguinte, com o educador da turma e a pedagoga do Curumim, que aceitaram a minha proposta de pesquisa, que iniciei de imediato. Em outubro de 2013, ingressei nas oficinas de teatro.
O caminho para a coleta de dados durante as oficinas aconteceu por meio das anotações no diário de campo, questionários de crenças, questionário socioeconômico e gravação eletrônica em áudio. Esses materiais instrumentalizaram a coleta dos dados e fizeram parte de uma amostra que constituíram o corpus que compôs a pesquisa.
A turma pesquisada foi composta de aproximadamente 10 crianças que variaram entre 10 e 13 anos de idade e que, além da oficina de teatro, também participaram de outras oficinas durante a semana: capoeira, hip-hop, leitura-escrita, dança e atividade física. A proposta do trabalho da oficina foi fazer com que as crianças, por meio do teatro, se tornassem atores da própria vida e “escrevessem seu próprio texto” através das práticas de oralidade.
O desenvolvimento da pesquisa se deu por meio dos acompanhamentos nas oficinas teatrais que aconteceram uma vez por semana no turno da manhã, durante outubro de 2013 a junho de 2014.
As turmas no Curumim eram itinerantes. Apesar de cada turma ter um educador responsável, elas iam circulando entre as salas dos outros educadores durante a semana, até todas as oficinas serem realizadas. As atividades desenvolvidas durante a oficina de teatro seguiam uma linha de trabalho que buscava uma preparação que levava, como produto final, à montagem de uma peça. Trilhava-se um caminho antes do contato com o texto das encenações, atividades que eram trabalhadas por meio de jogos teatrais, em cujo processo todas as crianças eram envolvidas.
4 A VIDA NA VILA
Vila nossa de cada dia,
De todo dia,
Vila do morro, dos barracos, grotas,
De lama.
Vila dos buracos nossos,
Vila de nossos barracos,
Vila de nossos filhos,
Vila nosso abrigo.
Berço amigo onde escondemos
Nosso cansaço,
Nosso braço pesado das dores
Do nosso trabalho
Pesado,
Mal pago.
Vila querida, namorada nossa.
Vila de nossa vida,
Vila “nêga”,
Vila amada
Vila nossa de cada dia:
Vila Olavo Costa.
Niño Liberdad
Retomamos aqui, resumidamente, o que já ficou dito no início desta dissertação.Na metade do século XX, um novo Matadouro Municipal foi construído na cidade em um território conhecido como “Sítio do Resto”. Atrás do Matadouro, existia uma área de pastagem que se ampliava até o alto do morro, que ficou conhecido mais tarde como “Caminho do Boi”, local onde foram construídos os primeiros casebres. Pouco a pouco, o local foi sendo povoado.
Os primeiros moradores do bairro foram constituídos por famílias desabrigadas e migradas de outras localidades da cidade. O cenário do local foi sendo modificado com o passar do tempo, com a vinda de mais moradores. Do centro da cidade, também vieram famílias que foram afastadas dos meios urbanos. Com o intuito de desocupar as moradias populares que existiam na parte central de Juiz de Fora e refrear esse crescimento, o então prefeito da época, Itamar Franco (1967-1970), autorizou que desocupassem a população que construísse suas moradias no centro da cidade:
Todo barraco que for iniciado, será derrubado imediatamente [...] essa medida vem sendo cumprida sem o menor problema [...] Em seguida à proibição, foi feita uma notificação aos favelados, para que eles procurem, o mais depressa possível, um outro lugar para morar. Essa medida poderá acabar com a favela, desde que os favelados não mudem em bando, reunindo-se em outra área desabitada. Se eles se mudarem individualmente, para pontos diversos, acabará com o problema criado com o crescimento do núcleo de favelados, embora isso não solucione o problema social das famílias, que vivem em condições subumanas. (ABREU, apud Diário Mercantil, Juiz de Fora, 29 jul. 1967, p. 6).
Juiz de Fora sofreu processo semelhante aos de outros centros urbanos que tinham a intenção de “higienizar” as suas áreas centrais. Nessa cidade, o descomprometimento social do poder público com as pessoas que viviam a situação de miserabilidade aumentava o preconceito em relação a elas, como se fossem um “mal” que devia ser exterminado; portanto, somente se estava excluindo a presença delas à vista dos olhos retirando-as do centro urbano, mas o problema continuava a existir. Além disso, o poder público responsabilizava totalmente esses moradores por aquela situação, na medida em que eles, sem condições, deviam conseguir meios para habitarem em outro local. Desse modo, compreende-se o que afirma Abreu (2010, p. 155). “[...] A grande diversidade na procedência dos ocupantes de áreas precarizadas, confirma que, em geral, esses sujeitos mudam-se constantemente, migram dentro da própria cidade de uma favela para outra.”
Segundo essa autora (op. cit.), a expansão das favelas pode também ter sido consequência da chegada das novas indústrias na cidade no início da década de 1970, motivando a migração da população das cidades vizinhas de Juiz de Fora em busca de emprego. As favelas eram locais em que muitas moradias não eram legalizadas. Desde a década de 1960, existiam pedidos à Prefeitura dos moradores da Vila Olavo Costa, pleiteando o título de doação a eles de suas habitações.
Ressalta Abreu (2010) que, de acordo com o Jornal Diário da Tarde, em 1969, a Vila Olavo Costa abrigava a maior quantidade de barracos e habitações sem estrutura e planejamento, que rapidamente se difundiam ali. Nesse mesmo período, constata Abreu (2010, p. 157) que “[...] a Vila Olavo Costa foi considerada pela Secretaria de Trabalho e Bem-Estar Social como a área ‘mais carente de Juiz de Fora’. Embora existissem outras, a Vila Olavo Costa chamava atenção por ser a mais populosa”. Somente em 1980, houve a legalização de posse de terra dos moradores.
O bairro Vila Olavo Costa vive hoje as sequelas da debilidade de um histórico de exclusão e invisibilidade advindo de mais de 60 anos, apresentando diversos desafios sociais para as entidades públicas. O índice de pobreza do bairro é maior do que a média do Brasil, atingindo áreas como a educação, a saúde e o padrão geral de vida dos moradores. Esses e outros dados provêm de um diagnóstico realizado junto à comunidade para o Projeto do Governo Estadual “Travessia Bairro” divulgado pelo Jornal Tribuna de Minas (2011), que tinha o intuito de promover recursos financeiros para a infraestrutura de moradias em situações precárias.
Figura 4 - Foto atual panorâmica do bairro Vila Olavo Costa, Curumim na parte central. Jornal Tribuna de Minas.
Esses dados trouxeram informações precisas acerca da realidade peculiar vivenciada atualmente na Vila. Dentre elas, pôde-se constatar que um adulto, em aproximadamente metade das residências, tem menos de 5 anos de escolaridade e, em 17,2% das famílias, não há ninguém que tenha completado os nove anos do Ensino Fundamental. Sobre isso, comenta o jornal juiz-forano Tribuna de Minas
Esse tempo de frequência ao ensino é inferior ao do Nordeste do país, que ocupa o último lugar nacional em relação aos anos de estudo entre a população acima de 10 ou mais anos de idade: 7,2. De acordo com dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), referente a maio de 2010, a média de anos de estudo no Brasil é de 8,8 anos, o que já é considerado muito baixo. Quando se trata da Vila Olavo Costa ainda são subtraídos 3,8 anos. Para agravar o quadro, 3,8% das residências têm crianças em idade escolar que não frequentam as aulas, impulsionando o ciclo da exclusão (TRIBUNA DE MINAS, 2011).
Além das questões educacionais, outros problemas emergem que precisam ser cuidadosamente olhados e solucionados, transitando em outras esferas, como podemos perceber no quadro abaixo:
Debilidades de infraestrutura das casasNúmero percentualSem acesso a água potável3,1%Sem sanitário10,4%Criança em idade escolar fora da escola3,8%Papelão, sacolas ou cimento batido usados como piso7,4%Sem geladeira8,5%Sem telefone fixo23,5%
Quadro 13: Quadro feito pela pesquisadora, através dos dados apresentados na matéria do Jornal Tribuna de Minas (2011).
Devido a essas carências, parte da população se encontra em situação de precariedade, o que aumenta sua condição de vulnerabilidade social. Segundo o Censo 2010, dentre as residências de Juiz de Fora, em 43% delas a renda mensal não excede a um salário mínimo. A Vila Olavo Costa é um dos bairros que se destacam entre esses dados, com residências em que a renda total é menor que ¼ do salário mínimo. No gráfico abaixo, baseado nos dados fornecidos pelo IBGE (2010), percebemos a comparabilidade desses dados entre os bairros de Juiz de Fora, demonstrando aqueles com maior ou menor renda:
Figura 5 – Ganhos por domicílio.
Novos projetos têm sido implementados. Com a não execução do Projeto “Travessia” advindo do governo estadual, que tinha o objetivo de mudar a realidade de privações do bairro por meio de investimentos, o que não ocorreu, um novo projeto vem ampliá-lo na tentativa de contribuir para a diminuição das desigualdades e debilidades sofridas no local pela população, em de infraestrutura, segurança pública e políticas integradas.
Esse é o cenário em que se encontra o Curumim e onde esta pesquisa se realiza. Meu intuito não é expor as debilidades sociais, econômicas do lugar e muito menos reforçar os estigmas tão entranhados no imaginário social quando o assunto é o bairro. Paiva & Burgos (2009) consideram que, hoje, a maior parte das escolas públicas brasileiras recebe os alunos, assim como acontece no Curumim, no próprio território em que essas mesmas escolas estão inseridas, tornando simbólico esse lugar, que é a escola, associada ao território em que está instalada. Sendo assim, muitas vezes a escola torna-se um ambiente estigmatizado, assim como o lugar a que ela pertence. A consequência disso é grave, como afirmam Paiva & Burgos (2009, p. 8):
Um território segregado, por razões econômicas e/ou culturais, tende a segregar a escola, marcando negativamente seus alunos, professores e funcionários, e impondo consequências de enorme significado, tanto para o trabalho de instrução, quanto para o de socialização.
Essa caracterização do bairro tem, contudo, a finalidade de situar o local da pesquisa para uma melhor compreensão das muitas das situações ocorridas dentro das oficinas, assim como o contexto significativo de sua produção.
Na próxima sessão, veremos como o Curumim se constitui e se aloca dentro dessa realidade social.
4.1 O Curumim
Conforme já dissemos, em meados da década de 1980, surgiu, no município de Juiz de Fora, a Associação Municipal de Apoio Comunitário – AMAC. Essa associação tornou-se responsável pela execução de ações sociais, desenvolvendo trabalhos que envolviam iniciativas que pudessem diminuir a vulnerabilidade social de indivíduos que se encontravam em situações de risco. Essa vulnerabilidade, todavia, foi entendida como condições que concorriam para a exclusão social dos sujeitos.
Concomitantemente à criação da AMAC, em 1985, surge, na cidade, o programa sócio educativo denominado Pró-Criança. Esse programa foi destinado a crianças em situações de rua, oferecendo a elas, em horários distintos aos da escola, atividades culturais e educativas que pudessem ajudá-las no seu desenvolvimento social.
Na década seguinte, em 1993, o projeto Pró-Criança dá origem à implementação do projeto Curumim, inaugurado, inicialmente, no bairro São Benedito, sendo posteriormente estendido aos demais bairros: Santa Luzia, Vila Olavo Costa, São Pedro, Santa Rita e Benfica.
Os Curumins hoje fazem parte do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos e atendem crianças e adolescentes que vão da faixa etária dos 5 aos 17 anos de idade. Esses sujeitos desenvolvem, nesses centros, atividades extracurriculares no seu contraturno escolar, realizando trabalhos artísticos, esportivos e culturais por meio de oficinas realizadas, com enfoque nas habilidades sociais.
Esse Serviço tem como uma de suas características complementar o trabalho social com as famílias e prevenir a ocorrência de risco social, planejando e criando situações que orientem “[...] os usuários na construção e reconstrução de suas histórias e vivências individuais e coletivas, na família e no território.” (BRASIL, 2009, p. 30). Além disso, organiza-se, de modo que haja trocas culturais, possibilitando que possam ser ampliadas, assim como as vivências e o sentimento de pertença e identidade dos seus usuários. O documento Nacional de Serviços Socioassistenciais assim caracteriza esses trabalhos:
Têm por foco a constituição de espaço de convivência, formação para a participação e cidadania, desenvolvimento do protagonismo e da autonomia das crianças e adolescentes, a partir dos interesses, demandas e potencialidades dessa faixa etária. As intervenções devem ser pautadas em experiências lúdicas, culturais e esportivas como formas de expressão, interação, aprendizagem, sociabilidade e proteção social. (BRASIL, 2009, p. 14).
Desse modo, busca-se a redução e a prevenção de situações em que ocorram a vulnerabilidade e riscos sociais, assim como a promoção da melhoria na vida das crianças que utilizam esse serviço.
5 A PESQUISA
Conforme dito anteriormente, as crianças sujeitos da pesquisa são jovens que variam entre 10 e 13 anos de idade e, em sua maioria, estão no Curumim há mais de um ano. No bairro, não há escola de ensino fundamental e médio, somente uma escola pública voltada para a educação infantil. As crianças que iniciam sua trajetória escolar na segunda etapa da educação básica precisam migrar para as escolas dos bairros vizinhos para terem esse atendimento. Portanto todas as crianças participantes desta pesquisa são moradoras da Vila Olavo Costa e, nessa fase de sua vida escolar, estudam em uma escola estadual de um bairro próximo, além de, em sua grande maioria, se encontrarem no 6º ano do ensino fundamental.
São falantes da variedade linguística rurbana (BORTONI-RICARDO, 2004). Percebemos, durante a pesquisa, que algumas delas vieram de zonas rurais para o centro urbano.
As práticas de letramento vivenciadas são bem restritas. Em sua grande maioria, os livros presentes em suas casas são os didáticos, oferecidos pela escola. Aparecem também os de autoescola, ou de gêneros textuais familiares, como as receitas culinárias. Apesar do contato com os livros escolares, a maioria das crianças não possui o hábito da leitura no ambiente familiar.
Embora as crianças do Curumim realizem oficinas teatrais, relatam não irem ao teatro ou nunca terem ido. Ao cinema, algumas afirmaram já terem ido algumas vezes.
A relação com o Curumim é de prazer e afetividade. Afirmam sentirem-se seguras e valorizadas nesse ambiente. A relação com o bairro também é parecida. Quase todas afirmam gostar do bairro onde moram e não demonstram insatisfação com esse lugar onde vivem. São raros os relatos contrários, mesmo diante da adversidade, como o feito por uma menina em uma das entrevistas:
Pesquisadora: Você gosta do bairro onde você mora?
Paula: Mais ou menos.
Pesquisadora: Do que você mais gosta?
Paula: Das crianças ficá brincando na rua de noite.
Pesquisadora: O que você menos gosta no seu bairro?
Paula: Quando dá tiro. Lá em casa tinha uma passage na rua de baxo e na rua de cima e, eles descem correno que nem cavalo pra fugi da polícia.
Nessa entrevista, a criança demonstra um incômodo com certas situações que acontecem no bairro e que invadem sua condição de moradora e do seu ser criança, como a liberdade para brincar. Retrata, no seu depoimento, sua preocupação com as outras crianças que dividem o quintal da casa onde mora e da fragilidade que a falta de segurança traz.
O educador responsável pela realização das oficinas foi aluno do Curumim quando criança e também é fruto desse projeto social. Hoje é um jovem morador da comunidade e convive cotidianamente com as crianças no bairro e suas famílias, pois mora ao lado da instituição. É pedagogo, ator e diretor de teatro. Iniciou suas atividades artísticas no mesmo lugar em que hoje trabalha. Esse fator proporciona às crianças uma proximidade e identificação com o educador e com as atividades que ele propõe em suas oficinas.
No próximo tópico, abordaremos a descrição do teste de crenças realizado junto à turma, para nos aprofundarmos no conhecimento de suas crenças sobre a linguagem.
5.1 O que pensam as crianças?
No início das minhas observações nas oficinas, apliquei um questionário com 16 perguntas objetivas cujas respostas deveriam ser SIM ou NÃO, de acordo com as suas experiências para averiguar quais são as crenças que as crianças têm construído a respeito da língua, da sua relação com a disciplina Língua Portuguesa, da consciência que têm sobre as variedades linguísticas, sobre sua identidade linguística e sobre os aspectos teatrais que envolvem a linguagem. Esse questionário encontra-se presente no anexo I. Posteriormente ao teste de crenças, também realizei uma entrevista semiestruturada contendo 4 perguntas subjetivas relacionadas com as questões apresentadas no teste, as quais foram igualmente analisadas ao final deste tópico. As perguntas da entrevista encontram-se presentes no anexo II.
Percebe-se que, ao se inserirem na escola, muitos alunos têm parte da sua identidade negada por não utilizarem a linguagem que a escola privilegia, muitas vezes sem sequer promover condições para que eles dela se apropriem. Corroborando com Cyranka (2009), cremos que “[...] negar a linguagem, é negar, ao mesmo tempo, a ideologia que ela veicula. É impossibilitar a interação e, em última análise, a realização do um no outro.” Dessa maneira, questiona-se:
Como ser pela linguagem, se ela é negada pela escola e pelo professor que não reconhece valor na história, nas experiências vividas, que ela veicula e, consequentemente, nas marcas dessas experiências que vão imprimindo no léxico e mesmo na sintaxe desse dialeto considerado menor? Como ser pela linguagem com a palavra negada, sendo empurrado numa direção diferente daquela com que o sujeito chegou à escola, sem mesmo antes poder vislumbrar sentido nessa mudança de direção? Como se comunicar sem a palavra, que é material privilegiado da comunicação da vida cotidiana, vinculada a uma esfera ideológica (Cyranka, 2009).
É a escola uma das instituições mais importantes e que pode marcar tanto positivamente quanto negativamente seus alunos a respeito das crenças linguísticas. No processo de ensino-aprendizagem, as crenças linguísticas dos alunos vão sendo modificadas durante os anos escolares. Segundo Barcelos & Abrahão (2006, p.18) as crenças são assim entendidas:
[...] uma forma de pensamento, como construções da realidade, maneiras de ver e perceber o mundo e seus fenômenos, co-construídas em nossas experiências e resultantes de um processo interativo de interpretação e (re) significação.
A esse mesmo respeito, Kramsch apud Barcelos (2006, p. 19) revela que “[...] as crenças não só representam uma realidade social, mas constroem essa realidade”. Dessa forma, elas surgem por meio da interação social e incorporam características e perspectivas presentes nesse meio.
Por isso, um trabalho que privilegie a reflexão linguística à luz Sociolinguística por parte dos alunos é um passo importante para a democratização no ensino de língua e para a desmistificação de crenças negativas e preconceitos que desqualificam algumas formas de linguagem, principalmente dos alunos oriundos de classes populares, cuja linguagem é o principal alvo da crítica no ambiente educacional.
A partir das afirmações do questionário (v. Anexo 1), as crianças foram se posicionando, individualmente, em relação às questões que diziam respeito ao ensino da língua portuguesa, à realidade do multilinguismo, a sua relação identitária com a língua e à possível interseção entre o teatro e a linguagem, respondendo às perguntas SIM ou Portanto, algumas crianças responderam ao questionário de forma dissertativa como poderemos ver posteriormente em algumas vinhetas, explicando e exemplificando suas respostas. De acordo com a construção do questionário e por meio das respostas dadas, subdividimos as perguntas em 5 blocos:
Relação com o ensino de língua portuguesa
Avaliação linguística
Consciência sobre o multiliguismo
Reconhecimento da identidade linguística
Teatro e a linguagem
No bloco 1, sobre a relação dos alunos com o ensino de língua portuguesa, as perguntas que orientaram o questionário foram: a) Eu aprendo a falar português na escola; b) Eu gosto da aula de português; c) Nas aulas de português aprendemos a falar direito; d) Existem outras formas de se falar o português; e) No Brasil, todos falam da mesma forma.
No gráfico abaixo, podemos observar a porcentagem das respostas dadas pelas crianças para cada pergunta feita no questionário. A diferença estatística mais significativa apresentada nesse bloco de respostas se refere ao item (c), em que 93,33% das crianças acreditam que as aulas de português servem para aprender a falar corretamente, contrapondo-se a 6,67% que não acreditam nessa afirmativa.
Nas perguntas realizadas no teste, algumas crianças responderam às perguntas apenas com SIM ou NÃO, como foi solicitado por meio do questionário e outras estenderam as suas respostas de forma espontânea explicando as suas escolhas, como poderemos ver em algumas de suas respostas que serão apresentadas.
Podemos ver abaixo, um trecho de uma das respostas do teste de uma das crianças refletindo acerca das diferenças da forma de falar o português, referente ao item (d) do bloco 1 do teste de crenças:
Pesquisadora: Existem outras formas de falar o português?
Mariana: Porque, igual, quando nós... Quando eu tô em casa, aí tá lá, quando eu vou pra passeá, assim com a minha mãe, com meu padastro, com os meus irmãos, aí o meu irmão fala: mãe nóis vai aonde? Aí eu pego e falo assim, nóis vai a lugar nenhum porque nóis vai não existe. Aí tem esse tipo... da linguagem errada [...].
Nesse trecho, percebemos que a criança demonstra ter conhecimento sobre os diferentes tipos de linguagem, sobre as outras formas de se falar o português, e ainda emite julgamento de valor sobre a linguagem realizada pelo falante, nesse caso, o seu irmão.
No bloco 2, que classifiquei como Avaliação linguística, as questões que orientaram as perguntas foram: a) Estudar o português é muito difícil; b) Algumas pessoas falam que a forma como eu falo é errada; c) Eu falo do mesmo jeito com todas as pessoas e em todos os lugares; d) Quem mora na cidade tem a fala mais “bonita” do que aqueles que moram na “roça”; e) Quem mora na “roça” fala errado.
Diante das respostas dadas, percebemos, no item (a), que o maior percentual de respostas dadas, 80% afirmam que acham o português difícil e 20% o acham fácil. Com esses dados tão altos de avaliação negativa do aprendizado da língua, percebemos que, atrás desse discurso, subjaz ainda uma concepção de ensino que não representa a identidade dos alunos. Grande parte das respostas em relação aos falares rurais, itens (d) e (e) demonstra que a visão que as crianças têm sobre essa variedade é de inferioridade em relação à variedade urbana.
No próximo trecho, temos a resposta de uma das crianças que discorre sobre a diferenciação da forma de falar das pessoas nos centros urbanos e nas zonas rurais (d), no entanto de forma positiva em relação às duas variedades:
Pesquisadora: Você acha que quem mora na cidade tem a fala mais “bonita” do que aqueles que moram na roça?
Mariana: Não, porque às vezes quem tá na cidade, as pessoas da roça elas ‘espremem’ um sentimento bem forte, falam mais, porque lá tudo que tivé de falá elas falam porque é uma cidadezinha pequena, roça, tudo que você tivé que falá você vai falá [...] Eu acho que não, sabe por quê? Porque muitas pessoas discriminam as pessoas que vêm da roça, por causa, ah que fala feio, que faz isso que faz aquilo. Eu nunca achei isso! Porque a genti, porque tem um jeito diferente de se comunicá, não o mesmo jeito de falá.
A aluna Mariana também reconhece em sua fala que socialmente existe distinção no modo como as pessoas tratam aqueles são oriundas das zonas rurais, vendo que são julgadas pelo fato de falarem de formas diferenciadas, sendo por isso, discriminadas.
Calvet (2002, p.65) lembra que “[...] existe um conjunto de atitudes, de sentimentos dos falantes para com suas línguas, para com as variedades de língua e para com aqueles que a utilizam”, o que culmina na avaliação positiva ou negativa de determinadas manifestações linguísticas. A esse mesmo respeito também afirma Faraco (2008, p. 72):
Assim, algumas variedades recebem avaliação social positiva, enquanto outras são desprestigiadas e até estigmatizadas. O importante é entender que tais valorações não são “naturais”, não são puramente linguísticas, mas resultam do modo como se constituem historicamente as relações entre os grupos sociais.
Um dado relevante que apareceu na pesquisa mostra que quase todas as crianças relacionam o “falar errado”, dentro da sua própria comunidade de fala, a algum problema fisiológico e não a um julgamento de valor sobre a língua:
Paula: Falá errado. Igual a menina chegou perto de mim e falou: Você vai comê de galfo? Eu falei, não é galfo, é garfo.
Rachel: Quando erra na palavra porque tá nervosa.
Pablo: Quando trava, gagueja.
Marcos: Que nem o Leonardo, que tem a língua presa.
No terceiro bloco de perguntas do teste, pude avaliar o conhecimento que as crianças tinham a respeito do multilinguismo por meio da seguinte questão objetiva: a) O português só é falado no Brasil.
Quase todas as crianças demonstraram não ter conhecimento de que o português era falado em outros lugares. Isso também demonstrou outra realidade presente no âmbito escolar: desconhecimento geográfico e territorial que elas apresentam sobre o mundo – continente – país – estado – cidade – bairro.
No questionário objetivo, para a pergunta “O português só é falado no Brasil?” 73% das crianças disseram que SIM e 27% que NÃO.
No bloco 4, as afirmações que nortearam o tema sobre identidade linguística foram: a) Eu gosto do jeito como eu falo; b) Gosto do jeito que a minha família e amigos falam; c) O jeito que eu falo é parecido com o jeito de quem mora na roça.
As duas primeiras afirmativas presentes no teste foram aceitas por 100% das crianças. Isso demonstra o sentimento de valor positivo que elas têm em relação à sua própria linguagem e comunidade linguística.
No questionário, vemos que as crianças que sempre viveram na cidade não identificam sua fala com o falar de quem mora na roça, exceto as crianças que já tiveram contato e vivência em áreas rurais, como vemos a seguir:
Pesquisadora: O jeito que eu falo é parecido com o jeito de quem mora na roça. Sim ou não?
Mariana: (Risos). Já foi.
Pesquisadora: Já foi?
Mariana: Porque eu vim da roça.
Pesquisadora: Jura! Me conta, de onde você veio? Onde você morava?
Mariana: Lá em Belmiro Braga.
Pesquisadora: Que legal! Tem muito tempo que você mora aqui em Juiz de Fora, na Vila Olavo Costa?
Mariana: Três anos. Eu quando eu era pequenininha eu sempre morei aqui, mas quando eu fiz três anos eu fui pra lá, aí eu estudei, aí eu tenho o português bastante claro, bem claro. Eu falo nós, vamos, vai, tus, tus não, tus não existe. Aí, eu falo, quando eu vinha lá de Belmiro, eu falava totalmente diferente, falo nóis vai, vamo. Entendeu? Não é porque lá é área caipira, roceiro, porque não era tanta gente que falava assim, porque lá é uma cidade a meia hora de viagem daqui, daqui pra lá é meia horinha de viagem, então não é tão diferente.
No bloco 5, as questões foram relacionadas com o teatro e com a linguagem por meio das seguintes afirmações: a) Eu gosto de falar em público; b) Eu aprendo português no teatro.
Nesse bloco, os dados mostram que quase a metade das crianças não gosta de falar em público. O percentual fica bastante dividido no item (a). Entretanto, 93,33% dos entrevistados reconhecem que no teatro aprendem algo relacionado ao português.
Após o questionário de crenças, foi também realizada a entrevista semiestruturada com as crianças (v. Anexo 2) com 4 perguntas relacionadas às seguintes questões: 1) Quem são as pessoas que você conhece que “falam bem” o português? 2) Para que você aprende português na escola? 3) Quais são os outros lugares em que também se fala o português? 4) O que você aprende de português no teatro?
Diante das respostas apresentadas no item (1), constatamos que boa parte das respostas remetia àqueles que estavam próximos do seu convívio, familiares, amigos, como podemos verificar no trecho a seguir:
Pesquisadora: Quem são as pessoas que você conhece que “falam bem” o português?
Pablo: Minha mãe e meu irmão.
Luis Cláudio: Meu pai, minha tia, minha vó.
Marcos: Lá na minha rua, o meu vizinho, a minha família.
Leonardo: Meu primo que mora no Santo Antônio, meu irmão e minha irmã.
Paula: Todas, porque ninguém que eu conheço fala errado. Todo mundo fala certo.
Rachel: Muita pessoa. Fernando (educador de teatro), você, Jorge (educador de capoeira).
Podemos perceber, por meio das respostas da maioria das crianças, o quanto a linguagem ainda está relacionada a um sentimento de valor positivo de identificação que elas dão aos seus pares. Para elas, o bem falar está associado àquelas pessoas que estão próximas e, em grande parte, às que estão ligadas ao seu meio familiar. Rachel, a criança cuja resposta destoa das demais, relaciona o grupo das pessoas que “falam bem” o português àquelas que trabalham no Curumim, como o educador de teatro e de capoeira e a mim que estava juntamente com eles realizando a pesquisa.
No item (2), sobre a questão do para quê se aprende português na escola, as respostas se concentraram em 3 níveis: aprendizado da leitura, da escrita e da fala:
Pesquisadora: Para que você aprende português na escola?
Marcos: Pra mim fala certo, pra mim não falá errado.
Beatriz: Pra mim aprender a lê.
Julio: Pra falar com as pessoas.
Paula: Pra mim aprendê a lê, falá bem.
Geovani: Pra lê, escrevê.
Pablo: Pra aprendê a ler melhor, pra aprender as palavras melhor.
Nesse aspecto ainda, algumas crianças não souberam responder a pergunta ou atribuíram o valor do ensino de português à aprovação em concursos públicos ou situações relacionadas a mercado de trabalho:
Eduardo: O português ajuda no concurso. Se não tivé o português, você não sabe.
Luis Cláudio: Pra quando eu crescê tê um serviço bom na escola. Sê professor de Português e Matemática, Ensino Religioso e Educação Física.
Em relação ao item (3), percebe-se que uma boa parte das crianças, confirmando os dados apresentados no questionário de crenças, não possui o conhecimento sobre os outros países em que também se fala o português, mesmo quando afirmam, no questionário, que o português é falado em outros lugares além do Brasil. Tudo indica que elas não têm noção do conceito de país. As respostas surpreenderam, como podemos ver nas transcrições abaixo:
Pesquisadora: Quais são os outros lugares em que também se fala o português?
Higor: Na roça e no Rio de Janeiro.
Geovani: Lá no Linhares, Belo Aurora.
Paula: Em São Paulo eles falam igual a gente. Ao invés de falá [porta] eles falam [poita].
Marcos: Estados Unidos e Portugal.
Luis Cláudio: Não lembro. No Rio fala, não fala? Só puxa o s.
Do mesmo modo, em outro trecho apresentado, também podemos ver o relato de uma das crianças que consegue perceber a característica do multilinguismo explicando a diferença entre as linguagens que ela consegue perceber em seu contexto de vida:
Mariana: Eu tavo passeano lá no parque Halfeld aí a gente se debateu com uma mulher lá do Japão. Ela vei lá do Japão. Ela, fala metade português. Ela podia, falá umas palava em português e bastantes em japonês. Aí o que foi mais legal, ela pediu eu não entendi a linguagem mas, ela falou de um jeito, que porque ela não fez gesto nenhum e eu entendi ela comunicando comigo. Ela falando assim pra mim ajudá a netinha dela a subi no escorregador, só que eu não... eu tava olhando assim pra menina e a menina tava com cara de quem queria i para o escorregador [...] aí ela tá lá e ela falou umas palavras tudo embolada lá, aí eu fiz assim (gesto de chamar com a mão) e subi com a menina e a menina começô a ri! Aí eu falei ah tá, agora eu entendi. Aí ela começou a chamá o nome da menina: Araksunan, um negócio assim. Aí eu peguei e falei assim: Gente, o que que é isso? Aí eu pensei: O que deve significá esse nome?
Aí tem outras linguagens.
Pesquisadora: Então tá! Tem essa linguagem que você falou.
Mariana: A do errado e a do certo.
Pesquisadora: A do errado e a do certo.
Mariana: E a dos outros países.
A aluna Mariana aponta, em sua fala, a existência de diferenças em relação à linguagem. Percebe que as pessoas não falam da mesma forma, inclusive que essas diferenças se estabelecem a nível territorial, apontando, em seu exemplo, a diferença entre a linguagem falada entre as pessoas dos dois países (Brasil e Japão). No entanto, sua percepção também se dá em nível de uma avaliação linguística, pois emite também um julgamento de valor quanto à linguagem ser “certa” ou “errada”.
Sobre o item (4): O que de português você aprende no teatro, as crianças conseguem perceber uma ligação entre o teatro e o ensino de português, afirmando isso também na entrevista semiestruturada e demonstrando quais são esses elementos:
Pesquisadora: O que você aprende de português no teatro?
Marcos: Cantá, a lê, batê bateria, tia.
Paula: Lê, cantá, apresentá.
Eduardo: Várias coisa, as palavra que a gente fala, o jeito que a gente fala dos personagem.
Luiz Cláudio: Aprendo conversá, perguntá.
Mariana: Porque tem umas frases assim, que são bastantes frases! Eu me acho bastante desenvolvida pra falar, pra falar sim. Aí, é assim, tem um colega meu atuando. Aí nossos amigos tal, [...] Mariana, você é responsável por isso, isso, isso. Aí eu sento na cadeira, tá? Olho o roteiro. Aí a pessoa fala a frase errado, aí eu, não. Vooolta e fala essa frase exatamente. E o teatro ajuda a gente na escola, no desenvolvimento e na carreira artística! Ele nos ajuda bastante, porque nós trabalhamos com falas e leitura. Fala e leitura. Aí desenvolve mais o português.
Nessa vinheta, podemos observar que as crianças trazem percepções dos aspectos linguísticos embutidos no teatro, descrevendo-os em diversas atividades ocorridas dentro da oficina. Reconhecem ainda que existe a ação da linguagem inclusive em situações que geralmente não são realizadas em sala de aula, em uma estrutura de educação formal – bater bateria, como explicitado pelo aluno Marcos. A aluna Mariana, em seu relato, reconhece sua competência comunicativa para a fala e a capacidade de auxiliar seus colegas nessa função durante os ensaios das peças. Além disso, a criança reforça a importância do teatro no desenvolvimento das modalidades orais e escritas.
Essa sondagem gera dados que nos permitem conhecer mais da realidade dessas crianças e revelam, em parte, algumas características que elas trazem, como certas carências que necessitam ser supridas, por meio, inclusive, de um ensino que as oportunize ampliarem todas as suas possibilidades, não somente como alunos, mas também como cidadãos.
5.2 As oficinas de teatro
As respostas dadas ao questionário de crenças e as entrevistas semiestruturadas me permitiram sondar aspectos sociolinguísticos das crianças, para assim, poder articulá-los às atividades próprias de oralidade realizadas na oficina de teatro, que passarei analisar adiante.
Apresentarei cada processo deste trabalho com a turma de teatro em subdivisões por eixos de análise. Cada eixo, por sua vez, será analisado com base nas categorias dos componentes da pesquisa da Etnografia da Comunicação proposta por Del Hymes (BORTONI-RICARDO, 2014), já citada na metodologia. Desse modo, nos próximos tópicos irei apresentar 2 peças e 1 jogo teatral que foram desenvolvidos no Curumim ,no decorrer das oficinas teatrais durante o período da minha inserção em campo.
5.2.1 Eixo de análise 1: “Onde estão os meus direitos? Onde estão que eu não vi?”
A proposta inicial deste trabalho surgiu com base na orientação advinda da equipe pedagógica da AMAC, que norteia os blocos temáticos que serão trabalhados nos Curumins durante cada ano vigente. Portanto, é nesse lugar que situa-se a primeira categoria de análise apresentada nesse evento de comunicação, o “setting”, a cena ou “scene”, ambiente em que o ato de fala proposto para análise aconteceu.
A indicação para o período era que fosse trabalhado o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) com as crianças participantes do projeto. Elas, em cada evento de fala, são os “participants”. Nessa categoria, são elas, as crianças, as participantes das interações que aconteceram nas diversas oficinas oferecidas pelo Projeto. Cada educador social desenvolveria, dentro do seu trabalho, esse Estatuto de acordo com as competências relacionadas à sua oficina.
O ECA é a Lei Nº 8.069, sancionada em 1990, que tem como conjunto de normas a proteção integral à criança e ao adolescente, aprovada dois anos após a Constituição de 1988. O Estatuto da Criança e do Adolescente foi concebido na busca de assegurar os direitos básicos próprios à pessoa humana. De acordo com Ferreira (2000) essa lei introduziu, no âmbito dos direitos humanos, os das crianças e dos adolescentes. Esse Estatuto não é apenas um instrumento judiciário, segundo a autora:
O ECA estabeleceu um sistema de elaboração e fiscalização de políticas públicas voltadas para a infância, tentando com isso impedir desmandos, desvios de verbas e violações dos direitos das crianças. Serviu ainda como base para a construção de uma nova forma de olhar a criança: uma criança com direito de ser criança. Direito ao afeto, direito de brincar, direito de querer, direito de não querer, direito de conhecer, direito de sonhar. Isso quer dizer que são atores do próprio desenvolvimento. (FERREIRA, 2000, p.184)
Em relação ao trabalho realizado na oficina de teatro no Curumim, ecoava a seguinte pergunta para os orientadores que indicaram a proposta a ser desenvolvida: Qual seria o direcionamento dado para esse trabalho? O que a equipe pedagógica da AMAC esperava com esse projeto?
O objetivo esperado era trabalhar com as crianças, dentro da oficina de teatro, seus direitos e deveres embasados no ECA. Esse, portanto, é categorizado como “ends”, fins/propósitos da interação proposta pelo projeto.
No entanto, ao receber a proposta genuinamente, o educador da oficina de teatro questionou a forma como poderia ser realizado esse trabalho, pois a realidade das crianças com as quais trabalhava era diferente diante desse Estatuto, visto que diversos artigos e parágrafos contidos no ECA ainda não são cumpridos enquanto lei, no contexto vivencial dessas e de tantas crianças no Brasil. Não faria sentido simplesmente apresentar ou desenvolver o Projeto sem promover uma reflexão junto com eles.
A partir desse pressuposto, o educador começou um trabalho sobre o ECA fazendo um recorte dos 5 direitos fundamentais da criança no documento, sendo esse o “act sequence”, forma e conteúdo da mensagem que foi discutido e posteriormente estruturado e elaborado em uma peça teatral:
Saúde
Educação
Alimentação
Lazer
Proteção
O educador levantou uma série de questões para as crianças sobre esses cinco direitos básicos presentes no ECA, e elas começaram a discuti-las. A dinâmica para a realização da proposta se inverteu, no sentido de que as crianças se tornaram protagonistas do Projeto, com conversas a respeito de como esses direitos se configuravam na prática.
Ao apresentar o fundamento de que “Toda a criança tem direito à educação”, uma das crianças o questionou, pois havia presente na sala um colega que não tinha esse direito garantido, visto que ninguém o aceitava na escola. As crianças começaram a perceber que elas tinham esse direito, mas o seu colega ao lado não conseguia usufruir dele.
Educador: Toda criança tem direito à escola. Toda criança está na escola?
Mariana: Como que têm direito à escola se ninguém aceita o Charles na escola?
A criança citada vinha de uma série de demandas, por causa de dificuldades na consecução dos seus direitos; especialmente no que tange aos 5 fundamentos básicos do Estatuto, e isso era muito visível para todos. Ele frequentava o Curumim, no entanto, a escola tinha dificuldade de lidar com ele, de recebê-lo. Além disso, essa criança tinha, em seu histórico, o analfabetismo - ainda não sabia ler e nem escrever -, o que era do conhecimento dos outros colegas. Muitas crianças ainda estão fora da escola ou são “inadaptáveis” a ela. A realidade da evasão/fracasso no meio escolar é algo que é próximo a eles e foi uma questão levantada frente ao direito presente no Estatuto, assim como o aspecto referente à Saúde e aos outros temas selecionados com o trabalho.
A discussão nas oficinas sobre os direitos presentes no ECA surge, então, não como um objeto abstrato, preso somente no papel, mas começa a ser desenvolvida a partir de uma criticidade estimulada pelo trabalho desenvolvido pelo educador. A construção de uma peça foi, então, proposta como forma de fazer surgir um movimento de protesto, através da voz das crianças questionando aquilo que ainda não estava sendo feito, o que precisaria melhorar, enfim, questões que elas estavam vendo acontecer dentro da sua própria realidade e que estavam postas, mas a lei não conseguia garantir. Dessa forma, a categoria “instumentalities”, que são os instrumentos de transmissão da mensagem, ocorreu por meio das próprias interações verbalizadas ocorridas face a face entre o grupo das crianças e o educador em construção para esta peça teatral.
O educador começa a perceber que o material vinha das crianças, não exatamente da Lei que teria que ser transmitida a elas, pois elas revelavam ter a noção tanto dos direitos que tinham quanto de quais deles estavam sendo violados, mesmo que essa visão fosse ainda parcial. O trabalho se desenvolve, por essa via de denúncia, pela boca das crianças, em forma de peça teatral, cujo alvo são exatamente elas, através do Estatuto da Criança e do Adolescente. Se o educador coloca que toda criança tem direito à escola, as crianças mesmas percebem que aquilo não está sendo aplicado.
A mesma forma aconteceu no que tangia à saúde, na condução da reflexão sobre esses aspectos relacionados a esse tipo de atendimento. O médico que atendia os adultos era o mesmo que atendia as crianças? A especialidade de Pediatria nem sempre era garantida. Holanda (2010) lembra que é direito da criança ser atendida por um especialista da infância, ser atendida com a medicina adequada ao seu tempo.
Esse é o caminho que conduziu à criação do espetáculo que começou, então, a ser concebido, guiando todo o processo de encenação da peça que, por fim, se constituiu na categoria “genres”, o gênero textual oral, que se tornou a dramatização: “Onde estão os meus direitos? Onde estão que eu não vi?”
Nesse contexto de reflexão, esse trabalho se desenvolveu baseado nos princípios metodológicos do Teatro do Oprimido (TO), elaborado pelo teatrólogo Augusto Boal (2005). Essa perspectiva insere as camadas sociais menos favorecidas no processo de democratização teatral, por meio de um processo dialógico semelhante ao de Paulo Freire (2005) no que tange à Educação.
Esse princípio metodológico apresenta o Teatro fórum, como um estilo de encenação do (TO), uma ramificação que expõe uma questão problema vivenciada pelo povo. Ele surge em um movimento de diálogo cuja produção é baseada em fatos reais. Nesse contexto, os personagens que representam o lado oprimido e o opressor se confrontam e ambos defendem seus direitos.
Ao levar esses questionamentos e trazer à baila as características do Teatro fórum, a peça traz a exposição de um problema que faz o público também ser ator da cena e buscar a solução do problema que, segundo Boal (p. 29, 2005), “[...] se aplica ao estudo de situações sociais bem claras e definidas.”
Com base, portanto, nesses aspectos, a peça foi se constituindo, por meio de dados presentes na realidade, situações vivenciadas no Brasil e com “amarração” por jogos infantis. Informações fornecidas pelo CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) instalado junto ao Curumim mostraram que a principal refeição do dia de algumas crianças é feita nesse lugar e na escola. Diante disso, para encenação que discutiria o problema relacionado à alimentação, o educador apresentou uma música, também utilizando como “instumentalities” de transmissão de mensagem como proposta para essa cena, trazendo como base um trecho da música Comida, dos Titãs, para as crianças cantarem:
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comidaA gente quer comidaDiversão e arteA gente não quer só comidaA gente quer saídaPara qualquer parte
A gente não quer só comidaA gente quer bebidaDiversão, baléA gente não quer só comidaA gente quer a vidaComo a vida quer [...]
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
Nessa parte da peça, as crianças todas juntas cantam a música Comida, batendo com uma colher ritmicamente em um prato, aumentando o tom de voz e o ritmo da música até finalizá-la. Como motivação para essa cena, as crianças fizeram alusão às manifestações populares que aconteceram, no primeiro semestre de 2013 no Brasil. Essas manifestações aconteceram em várias cidades brasileiras, objetivando exigir a diminuição do valor da tarifa cobrada no transporte público. No entanto, essas manifestações, que inicialmente tiveram essa motivação, ganharam outras reivindicações com grupos maiores de adeptos, tomando grandes proporções no cenário nacional.
Em algum momento, no desenvolvimento do trabalho, uma das crianças questionou o educador, afirmando que a peça estava muito séria. A base da peça, nessa perspectiva do teatro-fórum, traz justamente esse caráter político, social, que gera incômodo, promovendo uma discussão profunda entre todos os envolvidos no processo. Boal (2005, p.29) esclarece ainda que
[...] o teatro fórum não é teatro propaganda, não é o velho teatro-didático; ao contrário, é pedagógico, no sentido de que todos aprendemos juntos, atores e plateia. A peça – ou modelo – deve apresentar um erro, uma falha, para que os espectadores possam ser estimulados a encontrar soluções e inventar novos modelos de confrontar a opressão. Nós propomos boas questões, mas cabe à plateia fornecer boas respostas.
Contudo, as ideias apresentadas nas cenas do espetáculo trazem a “costura fina”, que é uma amarração quadro a quadro, por meio de jogos que acontecem durante a apresentação, músicas da cultura popular e cenas infantis, como a cantiga Escravos de Jó:
Escravos de Jó dançavam caxangá.
Escravos de Jó dançavam caxangá.
Tira, bota deixa o Zé pereira ficar.
Guerreiros, com guerreiros fazem zig zig zá
Guerreiros, com guerreiros fazem zig zig zá.
Essa cantiga é um texto poético de tradição oral, que tem versos curtos e rimados, baseados em fatos do cotidiano, no plano do concreto, seleção lexical simples e estruturas sintáticas repetidas.
Antes, porém, de ir para a peça, essa cantiga foi trabalhada por meio de um jogo teatral durante a oficina, no qual cada criança tinha um cabo de vassoura, utilizando-o como um bastão na mão. Ficaram em círculo e tinham que mudar de posição na roda com o colega do lado, à medida que iam cantando a música, mas sem deixar o bastão cair. Não podiam jogar o bastão e tinham que esperar o colega ao lado estar pronto. O exercício exigia das crianças concentração, e elas tiveram dificuldade de fazê-lo, ficavam rindo diversas vezes durante o jogo, o que dificultava a execução da proposta. Uma das crianças, em um dado momento, advertiu os colegas:
Samira: Gente, cala a boca!
Educador: Existe outra forma de pedir silêncio.
Samira: Pode ficar em silêncio fazendo favor?
A turma voltou a fazer silêncio. Mesmo não sendo o objetivo principal o trabalho de monitoramento da fala durante os jogos, isso aconteceu entre eles. Essa produção estilística segundo Bortoni-Ricardo (2005) se caracteriza quando o falante torna-se mais atento ao falar, pois exige uma demanda de maior planejamento e cautela. A autora também aponta os processos de complexidade cognitiva, a relação entre o falante e o interlocutor, o contexto de produção textual, que interfere diretamente na construção e operacionalização desse continua. Eis aí uma oportunidade de desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos. Por fim, o educador conversou com elas sobre a apresentação e a necessidade de concentração que os atores precisam ter ao atuarem. Podemos incluir também nesse ato de fala o componente “norms”, que está relacionada à norma de interação e interpretação verbal. No momento em que o educador questiona o modelo de fala usado por Samira naquele espaço social e institucional, a criança percebe que aquele modo de falar não é aceitável naquele meio e situação, o que a faz recorrer à polidez.
O roteiro da peça é montado em forma de esquema, para que as crianças tenham ideia da estrutura e da ordem dos acontecimentos. É um trabalho de (re)construção. Elas não têm “rédeas” em cena, pois quem faz a cena são elas mesmas, o que as torna protagonistas daquela história.
Segundo Travaglia (1997), a competência comunicativa se caracteriza como a capacidade dos falantes empregarem, de forma adequada, a língua em diversas situações de comunicação, de forma progressiva. Essa competência se desdobra em competência textual, que “[...] é a capacidade de, em situações de interação comunicativa, produzir e compreender textos considerados bem formados, valendo-se de capacidades textuais básicas [...].” Nessa competência, encontra-se a capacidade transformativa, que permite ao falante modificar a língua para distintos fins e objetivos. As crianças durante o desenvolvimento desta peça puderam realizar a competência transformativa por meio do texto apresentado no roteiro.
Na cena 1, o ator 1 apresenta a síntese das ideias de Paulo Freire (2005): o processo do trabalho foi direcionado para que ele decorasse o trecho através da seguinte fala: “O ato de ensinar é inserir-se na História: Não é só estar na sala de aula, mas num imaginário político mais amplo.” Em cada apresentação, o aluno-ator produzia, em seu texto, a capacidade transformativa, pois parafraseava de diversas maneiras a fala do autor e, no final, falava a quem pertencia a citação: Paulo Freire. O relevante foi perceber que, inclusive, uma fala decorada também trouxe consigo essa marca transformativa.
As falas espontâneas reveladas na peça seguramente trouxeram essa característica de competência por parte das crianças, pois elas resumiam o texto original, o reformulavam e o parafraseavam, como veremos abaixo.
O primeiro trecho se refere ao texto impresso do roteiro de cena entregue às crianças que iam participar da peça, uma estrutura de linguagem fixa apresentada. O segundo trecho foi a fala já modificada de forma espontânea pela criança, dita em uma das leituras de cenas ocorridas no ensaio de uma das observações da pesquisa.
Pedro: “Todas as crianças deveriam ter o direito de ter lugares para brincar e se desenvolver em harmonia com as pessoas e o mundo. É uma pena que em poucos lugares do nosso país temos essa oportunidade.”
Pedro: “Toda criança tem direito à saúde, à vida, a família, ao lazer, à alimentação. Será que tem mesmo?”
Podemos perceber como Pedro retextualiza a sua fala, transformando-a, sendo capaz de dar-lhe também outro sentido. Ele é capaz de transformar o texto que está no futuro do pretérito para o presente do indicativo, conferindo ao texto uma constatação daquilo que antes deveria ser realizado. Além disso, ao trazer os questionamentos à baila no final de sua fala, leva o expectador a refletir sobre o seu texto. Segundo Marcuschi (2000), essa é uma tarefa complexa, pois, exige certo grau de planejamento por parte do falante que influenciará no produto dessa fala. Segundo o autor,
[...] toda atividade de retextualização implica uma interpretação prévia nada desprezível em suas consequências. Há nessa atividade uma espécie de tradução ‘endolíngue’, que, como em toda a tradução, tem uma complexidade muito grande. (MARCUSCHI 2000, p.70),
Dentro dessa peça, alguns textos foram lidos, como nesse outro exemplo:
Nota oficial do Estatuto da criança e do adolescente:
Artigo 7º: “A criança e o adolescente têm direito à proteção, à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
Para falas formais, o locutor precisa se portar de acordo com a adequação que o momento exige, sabendo que a pronúncia de textos judiciais precisa de uma atitude corporal, um tom vocal, que é diferente dos outros. Essa nota do Estatuto exigia que o modo de pronunciar - categoria “key - feita pelo leitor fosse de forma diferenciada, mais séria.
Esse trecho seria lido, no intuito de se trabalhar a figura de um jornalista, trazendo a informação de uma nota oficial de um artigo judiciário. Para isso, o ator que interpreta precisa compreender qual é a intenção do texto: Quem eu sou, no caso jornalista, onde estou, como declarar determinada fala e qual sentimento me conduz para falar aquele texto.
Pela falta de intimidade com essa linguagem, a criança que lia o texto, o fazia de uma forma indiferente, sem se envolver, falando maquinalmente. O educador, então, interveio, lembrando da formalidade na fala dos apresentadores da TV Câmera que, durante algum tempo, foi um canal de TV aberta que transmitia eventos, discussões e debates da Câmara dos Deputados. Pediu para que ela assistisse, observasse como eles se portavam ao falar. Mas, por dificuldades encontradas em casa, a criança não conseguiu assistir. O modelo televisivo de jornal que lhe é mais próximo é o Jornal Nacional e, mais uma vez, foi-lhe pedido para observar a postura dos jornalistas durante a apresentação do programa. Mas a observação não foi suficiente para que a criança adquirisse as habilidades necessárias para se apropriar tanto do habitus (conforme discutido atrás) quanto dos traços linguísticos manifestos pelos profissionais que ali se apresentam.
Isso nos mostra que determinadas competências linguísticas precisam ser trabalhadas, sistematizadas e retomadas no desenvolvimento do trabalho de língua materna ao longo de toda a vida escolar. O modelo de observação pode ser um instrumento para um trabalho que leve à reflexão linguística dos alunos, porém não é suficiente para que eles se apropriem dessa estrutura num curto espaço de tempo.
Barros (1997) ressalta que essa postura reflexiva de reconhecimento e diferenciação faz parte da consciência de um falante culto. Ele tem o conhecimento da existência de uma norma explícita da fala e dos papéis diferenciáveis de aceitação social em determinados espaços que são passíveis de variação e de avaliação da linguagem e do falante. Por isso, a autora afirma:
Os papéis sociais na conversação não decorrem apenas do conhecimento das posições sociais dos falantes, mas se constroem nos processos discursivos como mecanismos persuasivos-argumentativos do texto falado. Entre os papéis sociais encontra-se, sem dúvida, o de “falante culto” [...] , isto é, falante de prestígio, que conhece as regras da conversação e da língua, que emprega adequadamente suas possibilidades de variação, que tem a função de referendar os “bons usos” da linguagem. (BARROS, 1997, p.35)
A esse respeito, Aléong (2002) acrescenta que certas atitudes sociais estão embutidas na norma linguística, com elementos ligados também ao não verbal. Desse modo, reconhecer o papel social do interlocutor, a intenção do falante, o local da produção do texto amplia o domínio dos elementos conversacionais de um falante culto.
No final de cada oficina, são realizadas avaliações das atividades do dia por todos os envolvidos. É pedido às crianças que façam uma auto-avaliação da atividade e que digam oralmente como foi seu desenvolvimento. No entanto, as crianças ainda não se encontram seguras para poderem realizar uma avaliação profunda e crítica a respeito do que foi pedido, pois não abordam, de maneira ampla, os pontos positivos e negativos do que foi trabalhado nos ensaios. Observemos, por exemplo, o trecho abaixo:
Aluno 1: Muito bom, adoro fazer teatro. É engraçado.
Aluno 2: Muito bom, mas foi ruim porque eu quase machuquei toda hora.
Aluno 3: Eu gosto, porque quando eu vou ao teatro é parecido.
Aluno 4: Dá pra aprender muita coisa, porque quando crescer dá pra ser um professor de teatro.
Aluno 5: Eu não sei.
Aluno 6: Foi legal.
Como se vê, diante da proposta da avaliação oral e da autorização que lhes é dada de se posicionar diante do que produziram durante a oficina, as crianças ainda se encontram distantes para encontrarem estratégias argumentativas frente ao que lhes foi proposto. Ficam tímidas para elaborarem e desenvolverem suas respostas.
Por fim, o educador faz uma síntese do que foi desenvolvido na parte teatral, do comportamento e do que aquilo pode remeter para a vida deles. Geralmente sinaliza as propostas que serão trabalhadas na oficina seguinte.
Todas as crianças participam da construção das peças e dos jogos cênicos propostos na oficina; no entanto, é preciso compreender o aspecto processual dessa prática educativa, pois nem todas se encontram preparadas para esta exposição. A apresentação desse produto vai do entendimento que cada criança teve dessa construção. É necessário que cada um vá para o palco consciente do processo da peça, mas nem todas as crianças conseguem ter essa maturidade naquele momento. Elas precisam desenvolver uma atitude espontânea diante do que estão fazendo, precisam estar preparadas para entrar e estar em cena. Os jogos teatrais são diferentes da peça, pois quando a criança se apresenta para o público, ela vai dividir algo que construiu coletivamente junto com o grupo.
Síntese dos Componentes da pesquisa da Etnografia da Comunicação da peça: “Onde estão os meus direitos? Onde estão que eu não vi?”
CATEGORIASDESCRIÇÃOS – Setting or scene: ambiente
CurumimP – Participants: participantes
Crianças da turma da oficina de teatroE – Ends: fins ou propósitos
Trabalhar os direitos e deveres presentes no Estatuto da Criança e Adolescente - ECA
A – Act sequence: forma ou conteúdo da mensagem
Cinco direitos básicos da criança:
saúde
educação
alimentação
lazer
proteção
K – Key: tom ou modo de pronunciar
Mais sérioI – Instrumentalities: instrumentos de transmissão
Face a face/cantadaN – Norms: normas de interação e interpretação
PolidezG – Genres: gêneros textuais, orais ou escritos
Gêneros orais: conversa, debate, jogo teatral e encenação.Quadro 14 - Síntese dos Componentes da pesquisa da Etnografia da Comunicação da peça: “Onde estão os meus direitos? Onde estão que eu não vi?”
5.2.2 Eixo de análise 2: Auto de Natal
A preparação do Auto de Natal iniciou-se um mês e meio antes dessa data comemorativa. O educador levou três contos de Natal para serem lidos na oficina e, posteriormente, as crianças escolheriam um dentre eles para ser o texto representado em forma de peça em um Auto de Natal do Curumim. Esses contos foram:
1ª história: A visita de Jesus
2ª história: O pinheiro de Natal
3ª história: As rosas de Natal
O educador faria uma votação para escolher qual das histórias seria representada. Dividiu, então, as crianças em 3 grupos e entregou a elas um papel. Fez a seguinte reflexão:
A partir de qual momento no teatro a palavra se faz carne?
A partir do momento em que o ator, o diretor, o iluminador pegam o texto e o fazem virar cena.
O Auto passaria por uma adaptação e o educador explicou às crianças do que se tratava. Contou-lhes os três contos e elas ficaram muito atentas ao ouvi-lo. Posteriormente, deu-lhes 15 minutos para que cada grupo pudesse desenhar o que havia sido contado. Essa seria a primeira etapa da elaboração da peça.
A proposta apresentada, porém, não foi bem aceita, de modo que a atividade não foi concretizada pela turma, que se dispersou. Não houve interesse em realizá-la, ocorrendo, ao contrário, problemas de comportamento com várias crianças da turma. Tive, inclusive, que me retirar da sala e terminar a observação antes do tempo previsto.
No encontro seguinte, na busca de um texto para encenar um auto de Natal, o educador percebeu que escutar as crianças sobre suas experiências de Natal seria mais fácil para entender como elas se relacionavam com essa data e, a partir disso, começaria a estabelecer um trabalho que fizesse significado para elas. Após abrir o diálogo, percebeu que o que vinha delas sinalizava como um possível material para a construção de uma Folia de Reis. Na turma, existiam crianças com esse histórico em sua família.
Historicamente, após o nascimento de Jesus em Belém, guiados por uma estrela, três reis magos vieram do Oriente trazer presentes para o Menino Deus e adorá-lo. Assemelhando-se à viagem dos Reis, os foliões iniciam sua caminhada entre os dias 25 de dezembro ou 1º de janeiro, indo às casas, realizando orações com cantos rimados acompanhados por instrumentos musicais. Em várias regiões do Brasil, essa tradição se realiza de diversos modos diferentes de acordo com cada lugar e adquirindo novas características com o tempo.
As folias de Reis da Zona da Mata de Minas Gerais têm suas raízes na zona rural do princípio do século XIX, no início da colonização da região, e por isso seu ritual tradicional se refere a uma realidade diferente da realidade urbana do século XXI. Mas os rituais se modificam e se adaptam às novas circunstâncias, o que evidencia sua insistência em permanecer diante da vida contemporânea, revelando sua capacidade dinâmica de adaptação. Por isso, as eventuais mudanças na tradição não devem ser encaradas como negativas, pelo contrário, fazem parte da história, são sinais da criatividade da cultura popular. Por outro lado, muito valor deve ser dado àqueles grupos que, mesmo diante das adversidades atuais, ainda conseguem manter os rituais bem próximos àquilo que faziam os antigos, nesse caso é sinal de resistência e de perseverança. (JÚNIOR, 2005, p. 17)
Estudos demonstram que as primeiras manifestações da Folia de Reis ocorreram na região da Europa, de onde os colonos trouxeram essa tradição para o Brasil. Segundo Junior (2005, apud CASCUDO, 1988), os registros mais antigos remetem a uma descrição do Padre Fernão Cardim no ano de 1584 a uma comunidade de colonos.
Segundo Gomes e Pereira, as folias eram também populares na Espanha do século XVI e XVII, estando presentes na literatura de Lope da Vega e de Luís de Góngora y Argote. Também Mário de Andrade localiza nos teatros religiosos populares da Idade Média as origens dos nossos festejos, pastoris e reisados. A influência africana também é notada por Gomes e Pereira, já desde esta época na Península Ibérica (lugar na Europa onde se localizam Portugal e Espanha). (JÚNIOR, 2005, p. 37)
De acordo com Júnior (2005), atualmente a marca da influência africana pode ser maior ou menor, dependendo dos devotos e do lugar onde acontece. Segundo a crença, essa característica surge com Melchior, um dos três reis magos, rei negro, que foi visitar o menino Jesus.
Sobre a tradição da Folia de Reis apresentada pelas crianças do bairro, o educador retoma a experiência revelada por um aluno durante a oficina, que é forte em seu ambiente familiar:
[...] é o caso do Luis Cláudio, que o irmão foi folião e ele agora é folião, o irmão mais novo é folião e a mãe cuida da farda, cuida da máscara, do capacete, cuida de guardar e registrar toda essa história de folia de reis e da família que eles fazem parte.
Essa criança era a que tinha o mais vasto repertório de versos cantados apresentados na Folia. É atuante nas cantatas que acontecem no bairro. Iniciou essa experiência levado por um dos seus irmãos para ser folião em outro bairro onde participava. Porém, com a morte dele, continuou com a tradição e passou a atuar no bairro com seu outro irmão que também participava da festa. No trecho abaixo, vemos a descrição da criança sobre a sua inserção e participação na Folia:
Pesquisadora: Onde você aprendeu esses versinhos que você fala no alto de Natal aqui no Curumim?
Luis Cláudio: Porque meu (irmão) era folião ele me ensinou o, os verso, a minha mãe também aprendeu, aí ela me ensinou.
Pesquisadora: É? E hoje você participa?
Luis Cláudio: Participo.
Pesquisadora: É? E de qual folia você participa?
Luis Cláudio: Todo mês quando chega no... É... No... Natal, no dia 25 de na..., 25 de dezembro, nóis monta Folia lá na minha rua.
Outra criança, o Júlio, tinha uma referência muito forte sobre a Folia de Reis, pois o seu pai fora mestre de Folia, aquele que é o chefe, responsável pela improvisação dos versos cantados e por manter a tradição e transmissão oral (CASCUDO, 1984). Essa criança trouxe para a Oficina um verso chamado “25 de dezembro”, que conta um trecho da história do Natal com traço folclórico. Júlio, que estava em seu último ano no Curumim, desde os seis anos, participava da Folia junto com o pai que, naqueles dias, encontrava-se preso e, por isso, parara de participar do movimento. A Folia, com isso, havia acabado. Dizia que se emocionava com a festa, com as canções, inclusive na hora do teatro. Tinha o sonho de ter sua própria Folia quando crescesse e que estava homenageando o pai através da peça, em que ele era o mestre.
A partir do contexto histórico e cultural do bairro, se configurou o enredo e o processo criativo do auto de Natal em peça. Foram inseridos nessa construção os elementos do teatro, as danças próprias da Folia de Reis, os versos cantados e toda característica oral que é própria da Folia, que surge e se renova de forma criativa por cada folião.
O educador começou a explicar para eles o que realmente é a Folia de Reis e o significado religioso que ela traz. A representação dos palhaços como os soldados de Herodes que perseguiram Jesus Cristo logo após o seu nascimento, as vestes de cetim representando os Reis Magos, a bandeira representando Jesus Cristo. Novamente, o menino Júlio cantou uma música utilizada quando participava das Folias de Reis, do cantor e compositor Milton Nascimento, chamada Calix Bento:
Ó Deus salve o oratórioÓ Deus salve o oratórioOnde Deus fez a moradaOiá, meu Deus, onde Deus fez a morada, oiáOnde mora o calix bentoOnde mora o calix bentoE a hóstia consagradaÓiá, meu Deus, e a hóstia consagrada, oiá
De Jessé nasceu a varaDe Jessé nasceu a varaE da vara nasceu a florOiá, meu Deus, da vara nasceu a flor, oiáE da flor nasceu MariaE da flor nasceu MariaDe Maria o SalvadorOiá, meu Deus, de Maria o Salvador, oiá
Essa canção da MPB (Música Popular Brasileira) que foi levada por essa criança, que traz consigo a marca da linguagem urbana comum. Dessa forma, as crianças vão tendo a possibilidade de ter contato com esse tipo de linguagem por meio da Folia e se apropriando dela sem perceber.
A constituição do espetáculo se deu oralmente, valorizando a herança cultural do bairro e das famílias, levada pelas crianças, apoiando-se no conhecimento transmitido pelas gerações passadas. Foi uma oportunidade de resgate da autoestima do bairro e das crianças, imprimindo àquelas expressões culturais um valor positivo em contraposição à cultura de violência que até as Folias de Reis passaram a trazer. As próprias crianças relatavam que a Folia de uma rua não podia se encontrar com a Folia de outra, pois se corria o risco de sair tiro, paulada...
Esse foi outro aspecto relevante, pois, com o tempo, a Folia de Reis, naquele bairro, foi perdendo o aspecto cultural e religioso, tornando-se um espaço de violência, invertendo, portanto, todo o intuito dessa expressão artística. Aquele trabalho no Curumim pôde canalizar as expressões violentas e promover, para as crianças, outro olhar sobre esse movimento cultural. Até o próprio educador buscou conhecer e se aprofundar sobre o que era a Folia de Reis. Ela pertence a uma tradição cultural antiga, que hoje é cheia de estereótipos, inclusive no próprio bairro. Ao ser sistematizada, dentro de um trabalho que se realizou com espontaneidade, sem falas decoradas, a representação da Folia de Reis transformou-se num processo de identificação, criatividade e encontro de raízes culturais. As crianças se envolveram na peça, na sua realização. Elas construíram uma relação afetiva com o trabalho que estava sendo feito.
Após a junção das ideias apresentadas pelas crianças e o material colhido pelo educador, a peça se inicia com o canto de um grupo de crianças representando a Folia de Reis. Os versos de abertura foram trazidos por uma delas, que aprendeu em seu ambiente familiar, por meio da tradição oral, nos festejos da Folia de Reis:
Com licença (2x) Oiá
Com licença (2x) Oiá
Adoramos a Deus
São Sebastião da Peste e Guerra
São Sebastião da Peste e Guerra
São Sebastião da Peste e Guerra
Ai, São Sebastião da Peste e Guerra
Começam os versos falados espontaneamente e intercalados entre cada folião que entra em cena com batidas rítmicas de instrumentos musicais. Também esses versos, as crianças já trouxeram decoradas das suas vivências familiares. São versos que apresentam estruturas rimadas, linguagem simples de situações cotidianas e algumas com traços de humor, como veremos logo em seguida:
Luís Cláudio:
Joguei meu limão pro alto
Apontei meu canivete
Briga de gente grande
E criança não se mete
Tô doido que o mato seca
Pra cobra morrê de fome
Tô doido que chega o dia
Das mué cuidá dos home
Pablo:
Eu fui na porta do cemitério
Uma hora do dia
A porta do cemitério
Se fechava e se abria
Eu chamei o padre
Pra rezá Ave-Maria
Quanto mais ele rezava
Mais defunto aparecia
Geovani:
Eu tenho um anel de ouro
E também outro de prata
Por amor é que eu brigo
Por amor é que eu mato
Eu juro patroa que amanhã
Eu caso com aquela mulata
Higor:
Vinte e cinco de dezembro
Parti pela Mantiqueira
Encontrei Nossa Senhora
Carregando uma bandeira
Nossa Senhora cantava
Quando os reis respondiam
O menino Deus chorava
Pelo frio que fazia
Gato não é cachorro
Cachorro não é cutia
Vim buscar meu décimo terceiro
E o meu fundo de garantia
Esses são versos colhidos por amostragem dentro do vasto repertório de que as crianças se apropriaram e que podiam ser alterados a cada novo ensaio.
De acordo com a tradição popular das Folias de Reis, a figura feminina não participava dos grupos, que eram compostos somente por homens. Sobre isso, afirma Júnior (2005, p. 34):
Em Juiz de Fora aparece um outro personagem que não existe em outras cidades pesquisadas, a Catita ou Catirina, um personagem feminino que, sendo da parte do palhaço, muitas vezes provoca brigas ou desafios entre eles e seus grupos. A Catita ou Catirina é um personagem que aparece no maracatu de baque solto e no bumba meu boi, ambos nordestinos, porém são personagens de forma e significado diferentes, apesar de possuir o mesmo nome.
Segundo a tradição, essa mulher, Catirina, teria se disfarçado de homem para entrar e participar da Folia de Reis. Ela é uma figura opcional dentro da Folia, mas na encenação, tornou-se importante pelo fato da aluna Vanessa querer estar na peça acompanhando justamente os meninos do grupo. Pela solicitação da aluna em participar, o educador incluiu essa personagem na peça. Na encenação, os foliões cantam chamando a personagem, que se posiciona no centro do palco onde ela dança ao som dos meninos cantando:
Desce Catirina, sobe Catirina
Desce Catirina, sobe Catirina
Posteriormente, a Catirina recita os seguintes versos rimados:
Papagaio do rabo branco
Que vivia em terra roxa
Somente o meu amor
Merece um beijo na boca
Após a passagem da Catirina, é o momento em que entra em cena o mestre da Folia, representado pelo Júlio. Ele pronuncia o próprio verso que aprendeu com o seu pai, que também foi mestre, conforme já disse, e o trouxe para o auto de Natal no Curumim:
Vinte e cinco de dezembro
Eu vi a terra tremê
Os três Reis foi avisado
Que o Cristo ia nascê
Saiu, então, para a viage
Cada um de um lugá
Pra levá os seus presente
Para a Cristo entregá
E hoje vem a bandeira
Nessa rica ocasião
Salve todos da cidade
E todos dessa nação
Peço paz e alegria
Muito amô no coração
Repica a bandeira e caixa
Cavaquinho e violão
Chora a sanfona sofrida
O meu mestre folião
As crianças da Folia de Reis saem de cena e entram outras representando o presépio, ao som da música Cálix Bento cantada por todos os atores que participam da peça e que ficam no centro do palco encenando o nascimento de Jesus. Dois atores que representam anjos falam os seguintes trechos:
Tiago: Paz na terra aos homens de boa vontade
Leonardo: E o menino Jesus nasceu.
Após esse momento, as crianças que representam a Folia de Reis retornam à cena e todos terminam a encenação cantando a canção do Ivan Lins Ô de casa:
Que estrela é aquelaLá pros lado do OrienteDizem que trouxe com elaUm menino diferenteUm parente do DivinoPra guiar a nossa gente
Foi por obra do destinoQue o menino foi geradoE até hoje o peregrinoTem seu nome abençoadoAbre as portas pro reisadoSalve, salve, o Deus menino
Ô de casa, ô de casa Anuncia o pessoalA Folia é consagradaDeus abençoe o Natal
Ô de casa, ô de casa Anuncia o pessoalA folia é consagradaDeus abençoe o Natal.
A peça realizada contempla um trabalho de pedagogia culturalmente sensível, na perspectiva de se respeitar as diferenças sociolinguísticas e culturais das crianças, por meio de uma aproximação entre aquilo que é solicitado a ser feito pela instituição na qual elas estão, mas por um caminho que se dá através do próprio conhecimento delas. Bortoni-Ricardo (2005, p. 128) ressalta: “É objetivo da pedagogia culturalmente sensível criar em sala de aula ambientes de aprendizagem onde se desenvolvam padrões de participação social, modos de falar e rotinas comunicativas presentes na cultura dos alunos.”
Dessa forma, a aproximação dos alunos com o ambiente escolar faz dele não um local de aversão, mas um espaço onde os seus saberes podem se desenvolver e ampliar potencialmente.
Uma pedagogia culturalmente sensível significa conceber a sala de aula como um ambiente acolhedor e respeitoso das diferenças, onde se estabeleçam relações de confiança entre seus atores, possibilitando que alunos menos experientes sintam-se seguros para expor suas dificuldades, seus erros, com a certeza de que não serão humilhados, e sim, ao contrário, ratificados [...]. (BORTONI-RICARDO, 2005, p. 128).
Com isso, tem-se a possibilidade de as crianças terem sua autoestima reforçada e terem as suas identidades positivas descobertas e reafirmadas por meio da sua linguagem, sua realidade cultural para poderem, inclusive, se abrir a outros conhecimentos que o próprio ambiente educacional tende a oferecer.
Podemos perceber, nessa peça do Auto de Natal, que os componentes da análise etnográfica são bem definidos e especificados. Predominantemente, maior presença quantitativa é a dos homens, porque somente eles desempenham a função comunicativa de fala no Auto. Os instrumentos de transmissão da mensagem partem dos versos ritmados que são falados pelas crianças que interpretam as personagens da Folia de Reis e as canções típicas cantadas atreladas aos versos juntamente com a encenação do nascimento do menino Jesus.
Síntese dos Componentes da pesquisa da Etnografia da Comunicação da peça: Auto de Natal
CATEGORIASDESCRIÇÃOS – Setting or scene: ambiente
CurumimP – Participants: participantes
Crianças da turma da oficina de teatroE – Ends: fins ou propósitosApresentação de um Auto de NatalA – Act sequence: forma ou conteúdo da mensagemVersos e histórias contadas da tradição da Folia de Reis trazida pelas crianças do bairro.I – Instrumentalities: instrumentos de transmissão
Face a face/cantadaG – Genres: gêneros textuais, orais ou escritos
Gênero: jogo teatralQuadro 15 - Síntese dos Componentes da pesquisa da Etnografia da Comunicação da peça: Auto de Natal
6.2.3 Eixo de análise 3: Jogo teatral do navio
Como já dissemos, um jogo teatral antecede à montagem de uma peça propriamente dita. Esses jogos constituem atividades lúdicas e de improvisação, de preparação de personagens, intenções, sentimentos, cenários, para que as crianças amadureçam o processo de construção de cada encenação até chegar ao texto final. A esse respeito, Jappiassu (1998) esclarece:
Os jogos teatrais são intencionalmente dirigidos para o outro. O processo em que se engajam os sujeitos que "jogam" se desenvolve a partir da ação improvisada e os papéis de cada jogador não são estabelecidos a priori, mas emergem a partir das interações que ocorrem durante o jogo [...] O princípio do jogo teatral é o mesmo da improvisação teatral e do teatro improvisacional, isto é, a comunicação que emerge a partir da criatividade e espontaneidade das interações entre sujeitos mediados pela linguagem teatral, que se encontram engajados na solução cênica de um problema de atuação. (JAPIASSU, 1998, s/p)
Nas oficinas de teatro, os jogos são feitos em todas as turmas habitualmente. De acordo com a proposta da peça a ser trabalhada, o jogo tem o intuito de ir preparando a turma para receber, posteriormente, o texto que será trabalhado na peça. Nesse ponto encontramos o propósito interacional desse evento comunicativo, o “ends”. Dessa forma, quando o texto chega, as crianças, por meio dos jogos, já trabalharam a autoconfiança, as relações interpessoais, entre outros aspectos necessários para o seu desempenho enquanto atores dentro de cena.
Geralmente, esses exercícios têm muita adesão por parte das crianças, elas se divertem, por serem envolvidas de ludicidade; os jogos exploram e desafiam a criatividade delas. Mesmo existindo desafios a serem superados no decorrer das atividades, demonstram grande interesse em fazê-lo.
O jogo que será apresentado foi uma improvisação, em que as crianças da turma da oficina de teatro, “participants”, foram divididas em dois grupos: uma parte estaria atuando no “palco” e outra parte seria a plateia, porém, ambas participariam do jogo, cada qual no seu momento. O contexto em que estavam inseridas era uma viagem de navio. Cada criança escolheria um figurino que estava em cima de cada cadeira. No figurino estava escrito o nome da personagem em que a criança teria que atuar durante o jogo.
Eles fariam uma viagem em um navio no qual teriam que improvisar os acontecimentos que o educador direcionaria enquanto diretor da cena. Dois atores eram fixos: o comandante e um bebê. Porém existiam outros: um presidente, um repórter, um caipira, uma madame, uma cantora, um policial, entre outros. A “scene”, ambiente, onde o jogo aconteceu, foi em uma sala de vídeo do Curumim onde cadeiras foram dispostas, representando os bancos do barco para compor o cenário descrito pelo educador que iria dirigir a cena que se daria de forma improvisada por cada personagem.
Os tripulantes iniciam a viagem juntamente com o comandante. O educador vai descrevendo a cena e os acontecimentos, e as crianças precisam desenvolver os seus personagens e a linguagem espontaneamente. Dessa forma, as instrumentalidades, categoria “instrumentalities”, ocorrem a partir da linguagem falada entre as personagens, na medida em que a viagem vai acontecendo:
Educador: Ok? Tá todo mundo preparado? [...]
Educador: Silêncio! Ô Eduardo, assume a frente pra mim do barco.
Educador: Dois minutinhos para pensar nesses personagens e ver qual que é a função de cada um deles na, vida de cada um deles.
Educador: Vamos começar?
Alunos: Vamo!
Educador: O comandante vai anunciar que a viagem vai começar.
Higor-comandante: A viage começô.
Educador: Cada um de vocês está nesse navio por um motivo, tá?
Pablo: E o neném?
Educador: Sempre é por esse motivo.
Marcos - neném: UÉÉÉÉÉ!!!!
Educador: Inclusive o neném tem um motivo também.
Marcos- neném: UÉÉÉÉÉ!!!!
Educador: E o capitão tá muito feliz porque parece que é uma das viagens mais tranquilas que ele já fez, em toda a vida dele. Os tripulantes são calmos. Quando de repente ele recebe pelo rádio transmissor a notícia de que uma chuva muito forte está vindo por aí.
Educador: (Imitando a voz de alguém que fala no rádio) “Atenção comandante do barco 104 chuva se aproximando para o lado norte.” E ele, como cuida muito bem da tripulação dele, ela vai falar no microfone anunciando que vocês podem passar por uma tempestade, mas que ele está no comando.
Higor-comandante: Vocês vão passar pela tempestade.
Educador: Mas você está no comando.
Higor-comandante: Mas eu estou no comando!
No decorrer da história que vai sendo descrita, a tempestade começa e os personagens precisam ficar nervosos e preocupados, pois a chuva começa. Cada um tem um compromisso para realizar na sua posição, e o navio fica parado durante 40 minutos. Cada personagem começa a interagir um com o outro na viagem, por motivos distintos.
Pude perceber que essa atividade despertou interesse nas crianças em relação às suas próprias personagens e ao contexto no qual estavam inseridas. Houve um esforço por parte delas para poderem desempenhar bem as funções com as quais estavam comprometidas no momento do jogo. Nesse processo interacional ocorrido, conflitos existentes entre eles, inclusive acerca do próprio gênero não apareceram em cena.
O capitão prossegue a viagem, porém começa a entrar água no navio. Os passageiros sobem nas cadeiras para tentarem se proteger e, por fim, o navio naufraga. As crianças, imbuídas dos seus personagens, precisam se salvar do acidente ocorrido na viagem, mas também ajudar o neném que ali se encontra e que, com o decorrer da história, se torna um peso para eles.
Em alguns momentos alguns personagens não conseguiram se desenvolver no enredo. Possivelmente por algumas crianças desconhecerem as normas sociais que regiam o comportamento daquela personagem, como também pela característica pessoal mais introvertida delas.
Os passageiros chegam a uma ilha onde se deparam com vários desafios. Precisam encontrar comida, comida específica para o bebê, lidar com o frio, e isso exige que alguém do grupo os lidere e se posicione nessa função. Posteriormente, o diretor da cena orienta que, para se aquecerem do frio, façam, uma fogueira. No meio dessa fogueira, o educador pede que os tripulantes contem as suas histórias de vida, as histórias dos próprios personagens. Cada um inicia a sua espontaneamente; algumas crianças ainda se sentem inseguras para falar e não desenvolvem esse diálogo. Cada personagem precisa assumir o seu papel, a linguagem adequada que lhe cabe e que muda de acordo com a situação que vai se desenrolando na história.
Barros (1997) ressalta que a postura reflexiva, de reconhecimento e diferenciação da linguagem faz parte da consciência de um falante culto. Ele tem o conhecimento da existência de uma norma explícita da fala e dos papéis diferenciáveis de aceitação social em determinados espaços que são passíveis de variação e de avaliação da linguagem e do falante.
Diante desse quadro, encontra-se a possibilidade de realizar um trabalho reflexivo junto com as crianças com base na proposta da análise sociolinguística do português brasileiro (BORTONI-RICARDO, 2004), como apresentado anteriormente (seção Língua e norma, desta dissertação), através da adoção do modelo dos três contínuos, a partir dos cenários apresentados, dos textos falados e dos papéis desempenhados por cada ator.
Independentemente de o aluno pertencer a qualquer ponto da linha do contínuo, cabe à escola cumprir o seu papel como uma instituição educadora, mostrando, instruindo e ensinando como funciona a variação linguística no português do Brasil. O aluno só conseguirá ser competente e crítico no uso da sua língua, quando conhecer e se reconhecer na descrição desses contínuos.
Esses fatos nos levam a refletir na importância que a escola tem na formação das nossas crianças, principalmente as que provêm dos segmentos mais pobres da sociedade e a consequente responsabilidade de todos os atores envolvidos no processo educacional, entre os quais apontamos para o papel que sabemos limitado, mas nem por isso menos relevante, que cabe a sociolinguística aplicada à educação, nessa tarefa. (BORTONI-RICARDO, 2005, p.50)
Essa autora ressalta que é na escola que a criança brasileira tem a oportunidade de conhecer e ter acesso a estilos diferentes com os quais já é familiarizada, e é através dela que pode incorporar esses novos estilos ao seu repertório linguístico que, muitas vezes, é restrito.
Essa atividade também pode proporcionar às crianças e ao educador uma profunda reflexão tanto acerca dos papéis sociais que eles desempenharam durante o jogo teatral quanto dos papéis que exercem hoje.
Na avaliação, o educador perguntou sobre os personagens que foram fixos durante a atuação nos dois grupos: o comandante e o bebê. Refletiu com eles como foi a responsabilidade de comandar e como é ser comandado; quem são as pessoas que os lideram cotidianamente. Eles reconheceram as pessoas dos pais, dos avós e dos irmãos. Para eles, a maior dificuldade na viagem foi lidar com o neném, que era totalmente dependente. Questionou, então, as crianças: Quantas vezes, na nossa vida, nós assumimos o papel do neném?Quantas vezes assumimos o papel de comandados e ficamos em uma postura de quem não sabe nada ou não entende nada?
O educador explicou que, em um espetáculo de teatro, ao mesmo, tempo os atores são neném, comandante e comandado. Serão neném: pois o ator não sabe o que ele, enquanto diretor, irá propor para eles naquele momento; serão comandados, pois assim o serão pelo diretor, pelo texto, pelo iluminador, pelo cenógrafo, pelo figurinista e pelos outros atores; serão comandantes, pois cada um deve ser protagonista da sua própria cena. É necessário que se tenha um momento de assumir os seus próprios lugares, inclusive no espetáculo de teatro.
A criança que interpretou o policial precisou assumir a liderança da viagem no lugar do comandante e foi levada à reflexão. Em um momento da história, o comandante do navio se machuca e o policial lidera o grupo que se encontra na ilha, tomando conta do neném, que está indefeso, e acendendo a fogueira para esquentar os outros passageiros que estavam no barco. O aluno que interpretou o policial tem vários problemas de comportamento na instituição, mas participou, de forma expressiva, da atividade e teve uma atuação significativa em seu grupo. O educador o levou a refletir como sua atitude de cuidado e proteção também poderia ser refletida dentro do Curumim, com os outros colegas, no tratamento diferenciado que ele poderia dar às crianças das turmas com idades menores. Havia relatos recorrentes de violência dessa criança contra as outras.
O personagem do repórter não foi muito explorado no desenvolvimento da atividade, porém, no momento em que ele foi levado à reflexão, fui remetida à cena pelo educador, assim como toda a minha trajetória enquanto pesquisadora e também moradora do bairro, motivando o questionamento junto com eles:
Educador: O repórter. Quantas vezes na nossa vida a gente registra? Vocês estão vendo a Diomara aqui e a Diomara registra o tempo todo! Ela é meio que uma repórter. Da história dela! O que ela tá registrando é pra história dela. Pra minha história? Sim. Porque eu vou tá. Pra história da Paula? Sim. Porque a Paula vai estar. Mas, primeiro lugar pra história dela. Nós temos que fazer a nossa história notícia, a minha história notícia e fugir da manchete que é: Fulano de Tal, da Vila Olavo Costa, morreu baleado... Não! [...] Jorge Luis Ferreira recebe título de mestre de Medicina! De onde veio Jorge Luis Ferreira? Da Vila Olavo Costa. Luciana, de quê? Como? [...] Luciana Antunes Silva recebe ou não recebe mais, mas doa agasalhos para a Fundação Ricardo Moysés Júnior. De onde vem Luciana Antunes Silva?
Marcos: Vila Olavo Costa.
Leonardo: Tomou um tiro no peito!
Educador: Olha só o quê que eu tô falando. Vocês não acham que a gente tá na hora de começar a mudar a manchete da nossa vida? Analisem isso! Eduardo de quê? [...]
Eduardo: Eduardo Venâncio da Costa Luz.
Educador: Eduardo Venâncio da Costa Luz abre uma creche.
Alunos: (Todos riem).
Educador: Num primeiro momento, a gente vai rir, mas a creche que o Eduardo abriu foi lá na África do Sul! E aí o quê que vai acontecer?
Alunos: Ninguém vai rir. Vai dar parabéns. Porque lá não tem nada.
Educador: Por quê? Nós temos que começar a perceber que as boas ações geram muito mais lucro do que as más [...]
Por meio do jogo teatral, esse processo de reflexão, de produção de saber dos papéis sociais e linguísticos puderam ser trazidos em cena pela e para as crianças. Através dele, pôde ser possível transpor para a vida dos pequenos atores as diversas situações vivenciadas no universo imaginário no momento do jogo. Pôde-se, portanto, cumprir a finalidade que cabe ao processo que é próprio de todo o jogo teatral que, de acordo com Jappiassu (1998), parte do “[...] desenvolvimento cultural e do crescimento pessoal dos jogadores, através do domínio e uso interativo da linguagem teatral, sem nenhuma preocupação com resultados estéticos cênicos pré-concebidos ou artisticamente planejados e ensaiados.” A preocupação é com a dinâmica do movimento criativo e a possibilidade da liberdade da criação por meio da palavra que é dada a elas e a capacidade de reflexão sobre aquilo que foi realizado.
Síntese dos Componentes da pesquisa da Etnografia da Comunicação peça: “Jogo teatral do navio”CATEGORIASDESCRIÇÃOS – Setting or scene: ambiente
CurumimP – Participants: participantes
Crianças da turma da oficina de teatroE – Ends: fins ou propósitos
Preparação de jogo teatralI – Instrumentalities: instrumentos de transmissão
Face a faceN – Norms: normas de interação e interpretação
ImprovisaçãoG – Genres: gêneros textuais, orais ou escritos
Gênero: Jogo teatralQuadro 16 - Síntese dos Componentes da pesquisa da Etnografia da Comunicação da peça: “Jogo teatral do navio”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: EM BUSCA DA RUPTURA DO SILÊNCIO
“Nossas escolas são estranhamente silenciosas. Haveria por aí algumas exceção verdadeiramente significativa? Deve haver [...] Falo do silêncio da boca do aluno que nunca aprendeu a falar. Daquele aluno que chega às minhas mãos aqui na universidade e ainda não é hábil para apresentar um trabalho à frente de sua turma – nem mediocremente! - só porque nunca aprendeu a falar! Falo do silêncio da pena daquele aluno que nunca aprendeu escrever [...]. Falo do silêncio que assombra o ouvido daquele aluno que nunca aprendeu a ouvir. [...] Falo do silêncio aterrador da mente daquele aluno que tenta e retenta compreender o mais básico dos textos que lhe cai nas mãos e não consegue. [...] Falo do tenebroso silêncio causado pela infértil imaginação de um intelecto que não respira. Falo do silêncio de um horizonte fechado, em que não há ondas ou vento, nem pássaros voando ou sol nascendo. É desse silêncio múltiplo e escolasticamente desenvolvido que me atrevo a falar. Um silêncio academicamente ensinado, escolasticamente repetido, metodologicamente desenvolvido, totalmente proliferado, infelizmente acalentado. E das cicatrizes que esse silêncio deixou nas vidas dos alunos que por ele foram feridos, acreditando que estavam sendo por ele beneficiados.”
(FERRAREZI, 2014)
Diante da questão levantada no início deste trabalho - “Em que medida as práticas de oralidade desenvolvidas durante as oficinas de teatro realizadas no Curumim podem contribuir para ampliar a competência linguística dos alunos?” - trago aqui algumas constatações.
A primeira verificação parte da transformação que esse trabalho causou em mim. Iniciei esse trabalho justificando que minha voz, pertencente à voz do meu povo, seria representada por meio desta pesquisa. No entanto, descobri também o quanto de silenciamento trazia em mim durante anos. Trazer a minha voz para esse trabalho foi um renascimento, uma trilha cheia de surpresas e descobertas, mas um caminho também, por vezes, muito exigente e doloroso. Um percurso de vida que se converte em um percurso acadêmico marcado pela resistência! Resistir aos ventos contrários, resistir àquilo que impede de ir adiante, resistir às palavras e situações adversas. Resistir pelos meus!
Foi um caminho de encontro com o outro, no qual esse, em uma atitude de abertura e generosidade, permitiu dividir comigo essa produção de conhecimento que foi capaz de construir esse saber aqui compartilhado. Essa troca é um universo inesgotável de potencialidades para a aprendizagem de ambas as partes – pesquisador e pesquisados.
Com relação ao lócus da pesquisa, a oficina de teatro foi um lugar simbólico de rompimento dos silêncios, pois era propriamente o lugar da fala. Ferrarezi (2014, p.13) ressalta que “o silêncio só é belo quando não é expressão de um constrangimento.”
As oficinas propiciaram às crianças a capacidade de reflexão acerca da linguagem, na medida em que aquilo que falavam representava o objeto da própria reflexão que faziam durante as oficinas motivadas pelo educador. Dessa forma, desenvolviam-se as habilidades de metalinguagem por meio do trabalho realizado com as atividades voltadas para as práticas com gêneros orais.
Ainda através do teatro, foi possível também observar que as crianças puderam se inserir dentro das possibilidades de se pensar sobre as diversas formas de linguagem por meio dos avanços dos continua. Através da monitoração estilística, os personagens representados pelas crianças, as colocavam em diferentes papéis sociais, locais, textos específicos que os possibilitavam refletir sobre que tipo de linguagem usar para cada situação comunicativa. O continua letramento – oralidade possibilitou as crianças estarem em contato com textos escritos, por meio de roteiros, e textos orais, os quais variavam de um extremo ao outro da linha. A oficina também propiciou às crianças por meio do continua rural/rurbano/urbano, a possibilidade de contato com textos que abordavam traços que perpassavam esses marcos da linha.
Além disso, percebi que é possível criar crenças positivas acerca do próprio vernáculo das crianças por meio das práticas de letramento que foram vivenciadas, principalmente porque foram realizadas partindo da linguagem que lhes são próprias. Isso fortalece a auto-estima dessas crianças em relação à própria cultura, o que contribui para que estejam abertas a um trabalho de conscientização da variação e das possibilidades de uso da língua.
A prática educativa do Curumim, como um centro de educação não formal, é um modelo educacional diferenciado das escolas tradicionais, tanto do ponto de vista da divisão do espaço físico quanto dos tempos e habilidades elaborados e desenvolvidos nesse local. Além disso, as atividades desenvolvidas nessa instituição contemplam outras habilidades que, na escola, não são trabalhadas.
A oficina de teatro não é uma aula de português e não tem o intuito de trabalhar com os aspectos propriamente linguísticos, mas sim artísticos. No entanto, enquanto gênero textual, o teatro atende a diversos aspectos que podem auxiliar um trabalho voltado para a expressão oral, por meio dos princípios da Sociolinguística Educacional, principalmente contemplando um trabalho através de uma pedagogia culturalmente sensível (BORTONI-RICARDO, 2004) capaz de levar até as crianças dessa comunidade possibilidades de ampliar sua competência de linguagem.
A minha percepção acerca dessas oficinas é que elas são capazes de revelar as características linguísticas das crianças, possibilitando o trabalho com a linguagem da forma mais natural possível e sem amarras, principalmente pelas diversas possibilidades que os personagens oferecem aos pequenos atores.
Além disso, as oficinas trazem consigo características que são essencialmente próprias do contexto sociocultural das crianças. As atividades realizadas buscam partir daquilo que é significativo para elas. Nesse sentido, as observações e os relatos dos alunos demonstram a satisfação que eles manifestam acerca das atividades desenvolvidas durante as oficinas, de modo que raramente encontra-se alguma rejeição entre eles para realizá-las.
O questionário de crenças aplicado aponta para uma identificação positiva dessas crianças com a “variedade rurbana”, da qual são falantes. Revela também que os falares de que mais gostam e acham “bonito” são aqueles que lhes são mais próximos, como os de seus familiares: mãe, pai, irmãos, avós e os de seus amigos. Outro dado relevante que deve aqui ser registrado foi o conceito de “erro linguístico” para as crianças. Segundo elas, uma pessoa que fala “errado” não tem problema relacionado à sintaxe, mas, sim à dicção.
Outra constatação importante é a diferenciação da prática pedagógica do professor da oficina de teatro, que também é pedagogo. Esse educador social é ator, diretor de teatro profissional e morador daquela comunidade, bastante sensível ao movimento que ocorre no cotidiano dos seus alunos. Essa proximidade faz com que ele conheça as suas histórias de vida, seus familiares, o processo de desenvolvimento de cada um. No ano de 2013, teve um trabalho científico premiado no III Encontro Latino-americano de Educação, acontecido em Porto Alegre, onde apresentou a promoção das habilidades sociais por meio de planejamento de intervenção na sua oficina de teatro. A realidade dos alunos e o olhar do professor para essa realidade interferem na relação ensino-aprendizagem estabelecidas entre esses sujeitos.
Cabe ainda a constatação de que durante o desenvolvimento da pesquisa, houve diversas limitações e desafios que afetaram a instituição e o bairro e que ainda se fazem presentes. Nesse sentido, são necessários trabalhos semelhantes a esse em tantas periferias do Brasil, onde as vozes das crianças possam de fato ser ditas e ouvidas. Desse modo, pararemos de reproduzir e formar seres silenciosos, incapazes de ouvir, ler, escrever e falar, para nos abrirmos a uma pedagogia da comunicação (Ferrarezi, 2014) capaz de tornar toda criança, que se inserir em nossas escolas, um ser competentemente comunicativo.
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ANEXO I
Abaixo, apresenta-se o questionário aplicado na pesquisa:
TESTE DE CRENÇAS
Curumim - Oficina de teatro
NOME: ___________________________________________________________
IDADE:____________________________________________________________
Eu aprendo a falar português na escola.
SIM ( ) NÃO ( )
Eu gosto das aulas de português.
SIM ( ) NÃO ( )
Estudar o português é muito difícil.
SIM ( ) NÃO ( )
Nas aulas de português aprendemos a falar direito.
SIM ( ) NÃO ( )
No Brasil, todos falam da mesma forma.
SIM ( ) NÃO ( )
Existem outras formas de falar o português que são diferentes do jeito como eu falo.
SIM ( ) NÃO ( )
Algumas pessoas dizem que a forma como eu falo é errada.
SIM ( ) NÃO ( )
Eu gosto do jeito como eu falo.
SIM ( ) NÃO ( )
Gosto do jeito que a minha família e amigos falam.
SIM ( ) NÃO ( )
Eu falo do mesmo jeito com todas as pessoas e em todos os lugares.
SIM ( ) NÃO ( )
O jeito que eu falo é parecido com o jeito de quem mora na “roça”.
SIM ( ) NÃO ( )
Quem mora na cidade tem a fala mais “bonita” do que aqueles que moram na “roça”.
SIM ( ) NÃO ( )
Quem mora na “roça” fala “errado”.
SIM ( ) NÃO ( )
O português só é falado no Brasil.
SIM ( ) NÃO ( )
Eu gosto de falar em público.
SIM ( ) NÃO ( )
Eu aprendo português no teatro.
SIM ( ) NÃO ( )
ANEXO II
Questionário:
Quem são as pessoas que você conhece que “falam bem” o português?
Para que você aprende o Português na escola?
Quais são os outros lugares que também se fala o português?
O que você aprende de português no teatro?
ANEXO III
Roteiro da peça Onde estão os meus direitos? Onde estão que eu não vi?
elaborado pelo educador
Cenário: 6 praticáveis
Personagens: os atores revezam papéis de esquete para esquete
Fundamentação Teórica: Teatro do Oprimido/Pedagogia do Oprimido.
Cena 1:
(Crianças entram em cena brincando e cantando escravos de Jó, essas crianças brincam de amarelinha, bolinha de gude, boneca).
Ator 1: “O ato de ensinar é inserir-se na história: Não é só estar na sala de aula, mas num imaginário político mais amplo.” (Paulo Freire)
Voz em off: Menino, menina entra, já está na hora de você ir para a escola.
Ator 1: No Brasil, nem todas as crianças estão na escola, os fatores são vários: faltam vagas, falta infraestrutura, falta até mesmo professor. Não é de se admirar se o resultado for este.
(As crianças que ficaram em cena continuam brincando e aparece um ator e oferece algo para uma dessas crianças).
Entram os atores cantando:
Escravos de Jó dançavam caxangá.
Escravos de Jó dançavam caxangá.
Tira, bota deixa o Zé pereira ficar.
Guerreiros, com guerreiros fazem zig ziz zá
Guerreiros, com guerreiros fazem zig ziz zá.
Cena 2
(Crianças começam a brincar de médico, quando entra o ator 2)
Ator 2: Nota oficial do Hospital Brasil:
A assessoria de comunicação do Hospital Brasil, avisa que a saúde para criança e para o adolescente está no CTI, estamos fazendo de tudo para reverter esse quadro.
(Passa um ator gritando)
Ator 4: Extra, extra. Criança morre no hospital, por falta de atendimento.
Ator 3:
Nota oficial do Estatuto da criança e do adolescente:
Artigo 7º: “A criança e o adolescente têm direito à proteção, à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
Música todos os atores.
Samba lelê tá doente, tá com a cabeça quebrada.
Samba lelê precisava de uma saúde pensada.
Cena 3
(Entra criança que estava vendendo bala pela plateia)
Criança que estava brincando: Mamãe, compra uma bala pra mim?
Mãe: Toma, meu filho, não vai esquecê o troco.
Criança trabalhadora: Muitos quando me veem acham bonito eu estar trabalhando, mas poucos me perguntam o porquê eu estou aqui e não ali.
(pergunta alguém da plateia.) Ô moço, quer me comprar uma bala?
Ator 6: Todas as crianças deveriam ter o direito de ter lugares para brincar e se desenvolver em harmonia com as pessoas e o mundo. É uma pena que em poucos lugares do nosso país temos essa oportunidade.
Cena 4
(Os atores que estavam brincando vão tomando postura de protesto e vão pegando os pratos que estão no cenário).
Música: Comida (Titãs)
No fim da música
Ator 5: A gente quer escola, saúde, lazer, alimentação e dignidade.
Ator 1: A gente quer nossos direitos sendo respeitados.
Ator 2: A gente que paz.
Ator 3: A gente quer cuidado.
Ator 4: A gente quer ser feliz.
ANEXO IV
Prece dos direitos da criança e do adolescente da peça: Onde estão os meus direitos? Onde estão que eu não vi?
Autoridades que estais no poder.Santificadas sejam as famíliasQue amam e valorizam as HYPERLINK "http://www.obrasileirinho.com.br/" \o "crianças" \t "_blank" crianças.Venha a nós o direito à saúde, moradia digna,Escola de qualidade e o respeito da sociedade.Que seja respeitado o estatuto da criança e do adolescente.Assim no Brasil como no mundo.Amor,carinho,respeito e dignidade nossa.Daí-nos hoje e sempre.Perdoai todos aqueles que nos violentam das mais variadas formas.Assim como exaltas todos os que nos amam, valorizam, compreendem.E não nos deixem abandonados à própria sorte.Livrai-nos da discriminação, exploração, violência e opressão.Deixai-nos conhecer a beleza e pureza das flores, mares, cachoeiras, brincadeiras inocentes.Amizades sinceras e da família amorosa.E que as famílias vivam em condições dignas de sua existência.Amém.
ANEXO V
Música Final da peça: Onde estão os meus direitos? Onde estão que eu não vi?
Tiúbi daun daun daun (3x)Tiúbi daun daun daun daaWow wow wow wow hoooooh Uô uo ro ro rooohTiúbi daun daun daun (3x)Tiúbi daun daun daun daaWow wow wow hoooooh Pera aí, mas se você não sabe eu preciso te dizerÉ difícil ser criança, tanta coisa pra aprenderResolvi deixar a vida ela mesma me contarAinda tenho tempo pode crer deixa rolar Imagina nessa idade o que aconteceu comigo Resolvi me apaixonar por alguém que não consigo Ironia do destino que só quer brincar com a genteNão sei lidar com isso tá tudo diferentePera aí criança tem que ser feliz Pera aí é isso coração me dizMais um sonho na cabeça Esperando que aconteça Pera aí por isso eu venho aqui cantarVou sair eu sei você quer escutar Como é possível é só acreditarO primeiro amor não se esquece facilmente Ainda mais quando esse amor não quer nem saber da gente Meu pai diz que eu sou homem e não posso vacilar Mais ainda sou criança tenho que desabafar Não consigo entender o que é que nos separa Quando vejo o teu rosto meu coração disparaMas arranjei um jeito de chamar tua atenção Pera aí é pra você que eu fiz essa cançãoPera aí criança tem que ser feliz Pera aí é isso coração me dizMais um sonho na cabeça
Esperando que aconteça Pera aí por isso eu venho aqui cantarVou sair eu sei você quer escutar Como é possível é só acreditarTiúbi daun daun daun (3x)Tiúbi daun daun daun daaWow wow wow hoooooh Uô uo ro ro rooohTiúbi daun daun daun (3x)Tiúbi daun daun daun daaWow wow wow woow uuuuuuuuuh... Link: HYPERLINK "http://www.vagalume.com.br/carrossel/pera-ai-jean-paulo-santos-cirilo.html" \l "ixzz2wXLidU6L" http://www.vagalume.com.br/carrossel/pera-ai-jean-paulo-santos-cirilo.html#ixzz2wXLidU6L
Peça construída a partir dos relatos e das colocações das crianças e adolescentes do Curumim da Vila Olavo Costa.
ANEXO VI
A visita de Jesus
Um anjo apareceu a uma família muito rica e falou para a dona da casa:Estou te trazendo uma boa notícia. Esta noite o Senhor Jesus virá visitar a tua casa.
Aquela senhora ficou entusiasmada. Jamais acreditara ser possível que esse milagre acontecesse em sua casa. Tratou de preparar uma excelente ceia para receber a Jesus.
Encomendou frangos, assados, conservas, saladas e vinhos importados.
De repente, tocou a campainha. Era uma mulher com roupas miseráveis, com aspecto de quem já sofrera muito.Senhora, disse a pobre mulher, será que não teria algum serviço para mim? Tenho fome e tenho necessidade de trabalhar.Ora, retrucou a dona da casa. Isso são horas de vir me incomodar? Volte outro dia. Agora estou muito atarefada com uma ceia para uma visita muito importante. A pobre mulher se foi.
Pouco mais tarde, um homem, sujo de graxa, veio bater-lhe à porta.Senhora, falou ele, o meu caminhão quebrou bem aqui na esquina. Não teria a senhora, por acaso, um telefone para que eu pudesse me comunicar com um mecânico?
A senhora, como estava ocupadíssima em lavar os cristais e os pratos de porcelana, ficou muito irritada:Você pensa que minha casa é o quê? Vá procurar um telefone público. Onde já se viu incomodar as pessoas dessa maneira? Por favor, cuide para não sujar a entrada da minha casa com esses pés imundos.
E a dona da casa continuou a preparar a ceia: Abriu latas de caviar, colocou a champanhe na geladeira, escolheu na adega os melhores vinhos e preparou os coquetéis. Nesse meio tempo, alguém lá fora bate palmas.
Será que agora está chegando Jesus? pensou emocionada. E com o coração batendo acelerado, foi abrir a porta. Mas se decepcionou. Era um menino de rua, todo sujo e mal vestido.Senhora, estou com fome. Dê-me um pouco de comida.Como é que eu vou te dar comida, se nós ainda não jantamos? Volte amanhã, porque esta noite estou muito atarefada.
Finalmente a ceia ficou pronta. Toda a família esperava, emocionada, o ilustre visitante. Entretanto, as horas iam passando e Jesus não aparecia.
Cansados de tanto esperar, começaram a tomar aqueles coquetéis especiais que, pouco a pouco, já começaram a fazer efeito naqueles estômagos vazios, até que o sono fez com que se esquecessem dos frangos, assados e de todos os pratos saborosos.Na manhã seguinte, ao acordar, a senhora se viu, com grande espanto, na presença do anjo.
Será que um anjo é capaz de mentir, gritou ela. Eu preparei tudo esmeradamente, aguardei a noite inteira e Jesus não apareceu. Porque você fez isso comigo? Porque essa brincadeira?
Não fui eu que menti. Foi você que não teve olhos para enxergar, explicou o anjo.Jesus esteve aqui em sua casa por três vezes: Na pessoa da mulher pobre, na pessoa do caminhoneiro e na pessoa do menino faminto, mas a senhora não foi capaz de reconhecê-lo e acolhê-lo em sua casa.
ANEXO VII
O Pinheiro de Natal
Conta a história que, na noite de Natal, junto ao presépio, se encontravam três árvores: uma tamareira, uma oliveira e um pinheiro. As três árvores, ao verem Jesus nascer, quiseram oferecer-lhe um presente. A oliveira foi a primeira a oferecer, dando ao menino Jesus as suas azeitonas. A tamareira, logo a seguir, ofereceu-lhe as suas doces tâmaras. Mas o pinheiro como não tinha nada para oferecer, ficou muito infeliz.
As estrelas do céu, vendo a tristeza do pinheiro, que nada tinha para dar ao menino Jesus, decidiram descer e pousar sobre os seus galhos, iluminando e adornando o pinheiro que assim se ofereceu ao menino Jesus.
ANEXO VIII
A lenda da rosa de Natal
Na noite em que o menino Jesus nasceu, uma pequena pastora, que no monte guardava o seu rebanho, viu passar alguns pastores e três Reis Magos, que se dirigiam para o estábulo onde Jesus estava, em palhas deitado, junto de Maria e José. Os pastores levavam presentes e os três reis magos levavam ricas ofertas de ouro, incenso e mirra!
A pequena pastora ficou triste, pois não tinha nada para oferecer ao menino Jesus e começou a chorar. Um anjo, que por ali passava, ao ver tamanha tristeza, passou junto da menina e, quando as suas lágrimas caíram na terra gelada, transformou-as em lindas rosas brancas, que a menina, com o coração carregado de felicidade, rapidamente apanhou e levou como oferta ao menino Jesus.
“Estabelece-se uma discussão conceitual acerca do termo favela e dos pré-conceitos que envolvem o fenômeno, com enfoque na ocultação da existência deste lugar de moradia por órgãos como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Centro de Estudos da Metrópole (CEM), pelo poder público municipal e pelos circuitos acadêmicos. Registra-se ainda parte do processo que vai da expansão à desconstrução de favelas na cidade de Juiz de Fora.” (ABREU, 2010, p.143).
Disponível em: . Acesso em: 12 fev. 2015
Disponível em: . Acesso em: 12 fev. 2015.
“[...] para o PDDUJF (Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Juiz de Fora), os termos ocupação subnormal e favela não são sinônimos. Neste documento, as áreas em questão seriam portadoras de uma situação de subnormalidade em relação à habitação, mas não chegam a ser reconhecidas como favelas.” (ABREU, 2010, p.149).
Preti (1997, p. 17) utilizou essa expressão para se referir às conclusões do Projeto NURC.
Esse trecho foi retirado de uma entrevista dada pela educadora Ana Lourdes Barbosa ao Jornal Brasil de Fato, publicado em 29 de outubro de 2009.
Distinguimos o termo letrado que conhecemos hoje - o saber utilizar o sistema de escrita alfabética nos diversos meios sociais - do que foi utilizado nesse outro contexto, em que letrado está caracterizando os homens que detinham um diploma superior, como médicos, advogados, entre outros.
Instituto Paulo Montenegro. Disponível em: http://www.ipm.org.br/ipmb_pagina.php?mpg=4.02.00.00.00&ver=por. Acesso em: 23 fev. 2014.
Disponível em: . Acesso em: 25 jan. 2015.
Segundo Marcuschi (2003, p. 3), o suporte textual é “um locus físico ou virtual com formato específico que serve de base ou ambiente de fixação do gênero materializado como texto”.
Compositor de um dos sambas-enredo da escola de samba da comunidade Juventude Imperial.
Disponível em: http://www.tribunademinas.com.br/cidade/mapa-revela pobreza-extrema-em-area-de-jf-1.947491. Acesso em: 13 mar. 2014.
Disponível em: http://www.ufjf.br/ladem/2011/11/19/morro-do-imperador-em-juiz-de-fora-concentra -maior-renda/. Acesso em: 2 jun. 2014.
O nome das crianças foi modificado para preservar as suas identidades.
Bairro que pertence à cidade de Juiz de Fora/Minas Gerais.
Bairros que pertencem à cidade de Juiz de Fora/Minas Gerais.
O nome das crianças foram modificados para preservar suas identidades.
O CRAS é um Centro de Referência Social em áreas populacionais que se situam em locais de risco e vulnerabilidade social. Oferece assistência às famílias, sendo referência de um primeiro contato para os projetos relacionados às políticas de Assistência Social, Proteção Básica e Proteção Especial. Disponível em: http://www.mds.gov.br/.
Compositores: Arnaldo Antunes; Marcelo Fromer & Sérgio Britto.
Os contos encontram-se presentes nos anexos VI, VII e VIII.
Referência bíblica: Mt 2, 1-12.
Disponível em: http://letras.mus.br/milton-nascimento/405853/
Disponível em: http://letras.mus.br/ivan-lins/541564/
A Fundação Ricardo Moysés Júnior é uma fundação da cidade de Juiz de Fora- MG, mas também com sedes em outras cidades mineiras e no Rio de Janeiro. Realiza um trabalho solidário em prol de crianças e adolescentes com idade de 0 a 21 anos em situação de vulnerabilidade social, portadores de câncer. Disponível em: HYPERLINK "http://www.ricardomoysesjr.org.br/rmjr/" http://www.ricardomoysesjr.org.br/rmjr/.
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